O meu pai sempre foi um homem de
palavras. Escritas, ditas, pensadas. Sempre foi um homem da verdade, e a
palavra é a verdade. E por isso, escrevo e digo, o meu pai partiu. Escrevo e
digo, como toda veracidade que a esta palavra faz jus, morreu. Partiu de uma
forma rápida… não houve dor, não houve sofrimento. Apenas uma última golfada de
ar a penetrar seus pulmões, já velhos e cansados, e um último olhar, terno e
manso do lobo-do-mar, que por certo se prendeu no teto para depois se libertar.
Pelo menos é assim que imagino, ou prefiro imaginar. Um foco de libertação
etérea, diante um homem que foi sempre maior que este mundo, maior até que ele aos
seus olhos. E todos nós éramos maiores quando perto de si.
Um homem que após o tumulto
passado há dois anos, me fez crer muitas vezes ser uma sombra do que havia sido...
Ainda que pensasse isto como filha, e as filhas às vezes só pensam asneiras. Com
o tempo descobri que havia sido transformado em “Pirata de Perna de Pau”,
ladrão de beijos e poeta trovador… ele apenas se reorganizou, nada mais. Apenas
se arrumou e se ajeitou ao que se lhe apresentava. E os meus olhos de filha
tiveram de se habituar a ver e a sentir um homem mais debilitado mas também,
para mim, sua filha, mais compreensivo. Mais sábio e conhecer de alguma verdade
que não revelava, mas que se sabia lá. Eu sabia-a lá. Lia-lhe os olhos e as
mãos, que após a temporada no Montepio muitas vezes entrelaçavam, paradas e
cansadas como vemos nos “mais velhos”, e eu sabia que havia coisas dentro dele
diferentes e verdades que só ele as sabia. Mas o meu pai, o “António”, o “Capucha”,
o “Mano Velho”, o “Tónica”, sempre esteve cá, lutando e permanecendo tal qual
rochedo de Peniche… depois de incursões por Inglaterra, e quem sabe, por ilha
dos “Largatos”, lá nos voltou com uma alma mais preenchida e uns olhos
castanhos ainda mais profundos. Este blog mostrou-o bem. Todos os dias. O meu
pai vivia em cada texto e em cada palavra que lhe saia pelos dedos. Sentado na
poltrona, chávena com café ou chá, óculos pendurados nas orelhas já maiores, as
barbas pingando o que bebia, os dedos às vezes enganadores e malandros que
escolhiam a tecla errada. O meu pai escreveu aqui o seu mundo e as suas
memórias. O meu pai escreveu-se aqui. Um trovador, como lhe chamou a minha
querida tia, apenas enclausurado por alguns anos, que aqui tomou forma, não num
corpo velho com menos uma perna, mas num revigorado homem inteiro, belo,
sensato, sensibilizado simultaneamente com a crueza e com a beleza da vida e do
dia-a-dia, grato por estar cá e grato por nos ter a todos. Um homem em paz, um
homem refeito. Um homem de convicções. Um homem amado. Sentidamente amado.
Todos os dias procuro-o em vários
sítios. E então acalmo, vejo-o nos olhos do meu irmão. Vejo-o nos seus irmãos,
meus tios. Vejo-o em mim, aninhado no meu coração, alojado na minha memória,
encrustado na minha pele. Vejo-o nas lágrimas de quem o chora, vejo-o nas
canções… vejo-o na minha mãe. Vejo-o na minha mãe…
O meu pai não vai voltar, mas
todos os dias voltamos a ele. Voltaremos sempre a ele. Volto sempre a ele.
Sempre.
Agradeço em meu nome, Rita
Capucha a “Qué / Cueca”, em nome da minha mãe, Anita “Caganita”, “ Mãe”, e do
meu irmão, Francisco Capucha o “balde de massa” mais recente “Zé broa”, o
carinho que lhe passaram através deste sítio, tão importante para si… os que
todos os dias vieram aqui ler e aos que aqui continuarão a vir. Devo, no
entanto, cumprir com aquele que considero ser seu último desejo… venho encerrar
a sua história. Contar o último capítulo. Venho dizer adeus. Venho dizer
obrigada.
Obrigada, pai.
Eternamente meu e eu eternamente
tua.
Rita Capucha, Vila franca de Xira, 7 de Janeiro de 2014.