Varanda de Pilatos |
Estranha sensação, poderosa, densa, se bem que suave, assenhoreia-se-me dos sentidos. Julgo estar a dormir. Isto não passará de um sonho!?!? Não tenho a certeza. Os sentidos, parecem despertos. Expectantes... Mas!... Se o for!?!? Não quero acordar!
Tarde manhã ou noite, sei lá às quantas ando. Sei daquela sensação doce de abandono, de desprendimento. Ao redor, tudo parado.. A minha memória afectiva que paulatinamente me vai tomando d’assalto. Me domina, me polariza, oprime agradavelmente.... Tudo é muito difuso.
Reconheço esta matriz de emoções. Aliás, como podia esquecer!!!!
Vivi em tempos uma experiência, que sem saber exactamente porquê, (ou por outra, até sei!!!) me deixou tão indeléveis marcas, que esquecer, é coisa que está para lá do que posso querer.
O que não sei, é porque esperou até hoje para voltar a manifestar-se.
Tudo começou há uns anos num passeio pelo Cabo Carvoeiro em Peniche.
Estava com um moço e meu "cicerone" de circunstância, de visita aquela esplendorosa falésia. A dada altura, já junto ao cabo, vindos dos Remédios, ele disse:
- Ah, a VARANDA de PILATOS!… Venha!
Fui, mas logo recuei ante o que se me deparava. Aquilo é uma falha entre rochas, a escassos meio metro do bordo da falésia…Um degrau de respeito aí para uns trinta metros a pique sobre o mar.
A falha tem quatro ou cinco metros de profundidade. A oitenta centímetros do fundo de terra do lado do mar, está rasgada a varanda.
Uma escada de madeira, grosseira, desengonçada, liga o cimo ao fundo da falha. Faz vertigens! Petrifica….
Vá…. Venha lá! Desafia o rapaz que, já na escada desceu três ou quatro degraus e estica os braços musculados que se agarravam firmemente à escada. Inclina o tronco para trás e repete: Vá lá então…. Venha…. Vire as costas ao mar, não olhe para baixo, olhe para mim desafiou…. Desça um degrau de cada vez.…. Fui! Titubeante , mas fui…
Deslizei então para o espaço entre os seus braços, o tronco e a escada. Vá, isso, assim… O contacto com corpo musculado do rapaz deu-me segurança, calor. Rodei ligeiramente a cabeça. Procurei confiança nos seus olhos. E sorri, não sei porquê sorri…. Isso olhe para mim…. Não olhe para baixo.
Por breves instantes os hálitos de ambos fundiram-se, mas mais nada se fundiu. Foi breve felizmente, este momento de “equívocos”. Agora que penso nisso, não sei qual das desgraças seria maior…. Se cairmos escada abaixo! Se ceder ao encantos do moço!
Aninhada, ou engaiolada naquele abraço, venci o efeito vertigem. Sincronizando os movimentos com os dele, descemos com razoável segurança. O contacto físico, foi agradável, diga-se.
Afogueada, não tanto pelo esforço físico, mas sim pela sublimação do medo vencido de mistura com algum embaraço, reparo que ali na Varanda, os ruídos do mar rebentam-nos na cabeça. Efeito acústico curioso, hipnótico…. Ouve-se o silvo raivoso do vento sem lhe sentirmos a feia agressão. Diria ser mais uma carícia.
Era o fim daquela tarde de Maio, linda, com um pôr de Sol que incendiava o céu e o mar. Até a cor parda dos rochedos se transmutou em cor de tijolo.
Extasiada não sei por quanto tempo – acho até que o tempo terá parado - sorvi pelas narinas, olhos, ouvidos, poros e tudo o que me liga ao exterior, toda aquela paleta de coisas, cores, sons, cheiros e tudo o mais.
Não me pude ver, mas devia irradiar uma aura fluorescente, tal era a sensação de felicidade plena, selvagem, que se apossou de mim.
O meu companheiro de aventura – aluno de Biologia Marítima, no Instituto fronteiro - desdobrava-se em explicações... Não sei quê…. A formação geológica, não sei que mais… As marés.....
Deixei-me envolver no turbilhão que docemente me subjugava... Deixei-me ir, sem sombra de dúvida ou de pecado, possuída em toda a linha, bem fundo, na minha alma, por aquela conformação cósmica.
Pobre rapaz..... Ou não percebeu… Ou não sei!?!? Ele era novito, não imberbe, mas novito!! E bonito digo eu…. Coitado!! Tentava impressionar-me, mas quase não recordo o que ele disse. Tudo o que terá dito e feito ficou nas covas, abafado pela explosão que se deu em mim. Ainda hoje o pobre coitado, há-de pensar que eu sou distante ou petulante, ou… Sabe-se lá o quê... Esquisita….
Desde então até hoje, não tinha voltado a sentir aquela sensação de abandono, de entrega, de deixar-me ir no vai-vem hipnótico das ondas, no cheiro da maresia, nas asas da brisa acre/doce que me beija o rosto, na cor do pôr-do-Sol, nas nuvens em castelos coloridos. E a argamassa que tudo une: O MAR. Sempre o eterno… O largo e imenso MAR…. Grosso, gentil…A ribombar-me nos sentidos, a roubar-me ao sossego em que estou posta.
Assim, de mansinho, estas emoções roubam-me as rédeas do querer.
Deixo-me ir nesta avalanche de prazer que de inicio, se insinua tímida, leve. Para a pouco e pouco subir de tom até à “violência” rubra, que me leva a esfregar os joelhos um contra o outro.
O ventre em fogo e os seios hirtos, os tendões retesados. Um sem ter, nem ser de "dores que desatinam sem doer", varrendo-me qual nortada, de lés a lés.
Por fim, uma inundação percorre-me, como um vale é percorrido pela água que um dique não conteve... Torrencial, às golfadas descompassadas, em contra-ciclo com a respiração forte, e o bater acelerado do coração.
Então e sem me dar conta de esforço ou fadiga, tudo se vai desvanecendo, como a doce sensação de uma dor a ir-se.
Alargando o grande compasso, acerto o passo com o tempo. De sobra, apenas consolo, gratidão.
Passei então a mão ao redor, senti a frescura dos lençóis. Senti-me bem.....
Pouco a pouco vou "carregando" o controlo das coisas.
Nos sons abafados pelos estores corridos, pressinto a Damaia a acordar.
O progressivo tomar de consciência, venceu por fim o torpor e... É Domingo...
Viro-me, respiro fundo, e retomo o sereno sono, do qual não sei se alguma vez terei saído....
Estela Serrano
António Capucha
Vila Franca de Xira Maio de 2009
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