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quinta-feira, 19 de maio de 2011

Ribeira de S. Sofia

Fonte de S. Sofia

Hoje foi-me confiado um segredo…. Uma senhora já com a sua idade, que conheço  do meu deambular por aqui e ali e que associo ao tanque das lavadeiras bem pertinho da minha casa. De olhos muito vivos e sagacidade típica das mulheres do povo… Um tudo nada mais baixa que eu, porque já começou a minguar, mas que ainda se mexe bem e dá para adivinhar que já conheceu outros portes, mais escorreitos, diria. Em conversa que presenciei com uma rapariga de passagem pelo local onde “calhandrávamos” um pouco, disse ela então: È rapariga, pareces o mano Jacinto …. Vais a setenta e a travar….. A mocinha não percebeu e prosseguiu a “mata cavalos” E a senhora disse-me: Áh…. Sabem lá essa do mano Jacinto! Ó vizinho!!!! Já há poucos a saber estas “estórias”….. Já agora eu conto.
Ali à rua Direita, um pouco acima da “muda da Mala Posta”, dois irmãos diferentes e parecidos, faziam as delícias de vizinhos. Um gorducho, o outro magrito e ambos com um pequeno defeito num dos pés que fazia com que “atirassem com os pés p’rá doca”, como nós, a garotada dizíamos. Ocupavam o primeiro andar de uma casa algo ampla para o que era hábito na altura e naquela rua. De janelas escancaradas o mais forte tocava um piano desafinado e o mano “magrelas”, “sarrotava” uma rabeca cheia de pó branco, proveniente das cerdas do arco a roçar pelas cordas, sendo que é isso que produz o som do instrumento….. Ora os manos Jacinto, tinham um carro, que na altura já era um calhambeque…. Verdinho claro e descapotável que o mano guiava com parcimónia e poderosos  “rateres” de escape…. Daí à malta inventar a ladainha foi um ápice: Óh mano? A quantos vamos?
Mano…. A setenta e a travar!!!!. A recordação destas coisas fez-nos rir com prazer….  Então… O mistério adensa-se….  Óh vizinho, e a lenda de S. Sofia…. Eu ainda a conheci!!!
É lá….. Parece que tocou uma campainha cá dentro. Essa não conheço, respondi. Segundo ela era uma moça filha de  gente fidalga que morava ali sobranceira ao regato. Despia-se  e tomava banho numa represa na base duma cachoeira… Isso era o bastante para os olhos patuscos do povo a guindarem a Deusa. Mas não se ficava por aqui…. Depois sentava-se na margem e fazia “crochet”…. Quando se acabava a linha, desmanchava tudo e fazia de novo…. Estas bizarrias, mais a grande beleza, da vestal deram em mito, e do mito à lenda da S. Sofia, foi um tiro. E a minha interlocutora conheceu-a, de vista claro, A senhora de S. Sofia…. Uma lenda viva…. Hei-de tirar isso tudo a limpo….
Hoje a Ribeira de S. Sofia, é uma destemperada ribeira que a maior parte do tempo não passa de um fio d’água, mas que quase todos os anos galga as margens furiosa. Se calhar  porque já muito pouca gente sabe da sua beleza bucólica e importância que teve para a Vila. A ribeira rasgava a urbe ao meio ali pela zona dos correios, e desaguava ao lado da fábrica do descasque do arroz. Nunca a vi assim… Algures nos primórdios do Século passado, A ribeira foi enterrada, melhor encanada, entre a Bica do Chinelo e a foz, no Tejo que é o grande lençol d'água de cujo vaivem nem sempre manso, resultaram as planícies deslumbrantes desta terra. E do curso a céu aberto da ribeira resultou outra coisa, esta no plano sociológico. A ribeira servia também de fronteira entre a Vila dos lavradores e rurais e a Vila dos varinos…. Duas culturas diversas, que cresciam cada uma para seu lado. Apenas a paróquia, a escola e a Junta era a mesma. Cada uma tinha a sua traça arquitectónica, o seu clube desportivo e as suas forças vivas como se costuma dizer. O desaparecimento da ribeira é hoje difícil dizer, se foi causa se foi consequência da interpenetração das duas culturas…. Se calhar é mais equilibrado dizer-se que foram os ventos da História que vieram esbater essas diferenças que as novas gerações já não interpretam… Não sei se bem, se mal…. Mas isso é um facto…
Uma coisa posso eu dizer: Quando rapazola, de olho arregalado e sensores em dia, não dei por nenhum drama, nem rezava a História que tivesse havido alguma liça Montecchio Capuleto. Mas isso digo eu que sou um mocinho com a “ponta do rabo branco”, isto é: sou da Castanheira do Ribatejo, embora tenha vindo morar para a vila em cinquenta e cinco do Século XX, com cinco anos mal feitos…. Por ventura membros de uma ou outra comunidade, à época, e sobrevivos ainda hoje, sintam presentes os ardores e o acinte da diferença por vezes gritado. Sou capaz de imaginar que sim…. Porque conheci o poder dos senhores da terra, aceito que a flor que se pudesse cheirar, não eram bem eles….
Bom….. Já lá vai….. As minhas classes, de instrução primária, já não havia nada disso. Éramos só putos a brincar ao boi e a puxar as tranças as miúdas…. E agora então…. Um dos bisnetos do senhor feudal da vila e concelho, andou na Escola oficial com o meu filho….  E é assim que vai forjando o futuro.


                           António Capucha

              Vila Franca de Xira, Maio de 2011

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