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terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Adeus

O meu pai sempre foi um homem de palavras. Escritas, ditas, pensadas. Sempre foi um homem da verdade, e a palavra é a verdade. E por isso, escrevo e digo, o meu pai partiu. Escrevo e digo, como toda veracidade que a esta palavra faz jus, morreu. Partiu de uma forma rápida… não houve dor, não houve sofrimento. Apenas uma última golfada de ar a penetrar seus pulmões, já velhos e cansados, e um último olhar, terno e manso do lobo-do-mar, que por certo se prendeu no teto para depois se libertar. Pelo menos é assim que imagino, ou prefiro imaginar. Um foco de libertação etérea, diante um homem que foi sempre maior que este mundo, maior até que ele aos seus olhos. E todos nós éramos maiores quando perto de si.

Um homem que após o tumulto passado há dois anos, me fez crer muitas vezes ser uma sombra do que havia sido... Ainda que pensasse isto como filha, e as filhas às vezes só pensam asneiras. Com o tempo descobri que havia sido transformado em “Pirata de Perna de Pau”, ladrão de beijos e poeta trovador… ele apenas se reorganizou, nada mais. Apenas se arrumou e se ajeitou ao que se lhe apresentava. E os meus olhos de filha tiveram de se habituar a ver e a sentir um homem mais debilitado mas também, para mim, sua filha, mais compreensivo. Mais sábio e conhecer de alguma verdade que não revelava, mas que se sabia lá. Eu sabia-a lá. Lia-lhe os olhos e as mãos, que após a temporada no Montepio muitas vezes entrelaçavam, paradas e cansadas como vemos nos “mais velhos”, e eu sabia que havia coisas dentro dele diferentes e verdades que só ele as sabia. Mas o meu pai, o “António”, o “Capucha”, o “Mano Velho”, o “Tónica”, sempre esteve cá, lutando e permanecendo tal qual rochedo de Peniche… depois de incursões por Inglaterra, e quem sabe, por ilha dos “Largatos”, lá nos voltou com uma alma mais preenchida e uns olhos castanhos ainda mais profundos. Este blog mostrou-o bem. Todos os dias. O meu pai vivia em cada texto e em cada palavra que lhe saia pelos dedos. Sentado na poltrona, chávena com café ou chá, óculos pendurados nas orelhas já maiores, as barbas pingando o que bebia, os dedos às vezes enganadores e malandros que escolhiam a tecla errada. O meu pai escreveu aqui o seu mundo e as suas memórias. O meu pai escreveu-se aqui. Um trovador, como lhe chamou a minha querida tia, apenas enclausurado por alguns anos, que aqui tomou forma, não num corpo velho com menos uma perna, mas num revigorado homem inteiro, belo, sensato, sensibilizado simultaneamente com a crueza e com a beleza da vida e do dia-a-dia, grato por estar cá e grato por nos ter a todos. Um homem em paz, um homem refeito. Um homem de convicções. Um homem amado. Sentidamente amado.

Todos os dias procuro-o em vários sítios. E então acalmo, vejo-o nos olhos do meu irmão. Vejo-o nos seus irmãos, meus tios. Vejo-o em mim, aninhado no meu coração, alojado na minha memória, encrustado na minha pele. Vejo-o nas lágrimas de quem o chora, vejo-o nas canções… vejo-o na minha mãe. Vejo-o na minha mãe…

O meu pai não vai voltar, mas todos os dias voltamos a ele. Voltaremos sempre a ele. Volto sempre a ele. Sempre.

Agradeço em meu nome, Rita Capucha a “Qué / Cueca”, em nome da minha mãe, Anita “Caganita”, “ Mãe”, e do meu irmão, Francisco Capucha o “balde de massa” mais recente “Zé broa”, o carinho que lhe passaram através deste sítio, tão importante para si… os que todos os dias vieram aqui ler e aos que aqui continuarão a vir. Devo, no entanto, cumprir com aquele que considero ser seu último desejo… venho encerrar a sua história. Contar o último capítulo. Venho dizer adeus. Venho dizer obrigada.
Obrigada, pai.

Eternamente meu e eu eternamente tua. 
Rita Capucha, Vila franca de Xira, 7 de Janeiro de 2014. 

2 comentários:

FN disse...

Sempre com grande curiosidade visitava este blog para saber o que este 'gajo' vai escrever hoje. Adorei todos os textos sobretudo os que relatavam as suas vivências com as 'batas brancas'. Hoje com enorme tristeza encontrei um rol de sentimentos tão profundos e sentidos que as lagrimas rolavam pela cara, porque sabia que não tinham sido escritos pelo meu 'crido', mas... foram para o meu 'crido'. A 'Condessa'

Paula disse...

Tal como a FN, visitei este sítio quase diariamente, quase religiosamente para ver/ler o texto do dia! Hoje, tal como ontem e o dia anterior, vim ver se já estavam escritas as palavras que, tinha a certeza, iriam aparecer. Sem surpresa, verifico que são tão lindas e profundas quanto merece o Sr. General que, para sempre, ficará gravado nas nossas memórias e corações. De onde quer que esteja a ler, está de certeza maravilhado com o legado que deixou e orgulhoso até não poder mais... Um abraço.