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quinta-feira, 30 de setembro de 2010

O vinho, ou a estranha dança

                      

  O vinho, ou a estranha dança
O título dizendo o que diz, fica bem equívoco. E é assim que eu gosto! Quando se espera que eu vá perorar sobre o vinho, bebida nacional de imerecida má fama, que tem servido a toda a casta de moralistas oportunistas e outros espertalhaços para apontarem o dedo - desporto nacional – aos incautos e cultores do bom beber e em simultâneo chamar a atenção para a sua própria virtude, geralmente falsa, mas que lhes faz um jeitão….. Alguns há, que até disso fazem vida….
Mas não!!!! Fiquem descansados que não vou fazer concorrência aos expert’s que deambulam portuguesmente sobre a matéria, e alguns até muito bem….. E já que não vou falar da bebida densa e ancestral podem também contar com o facto de a: Estranha dança, não ser dança nenhuma, nem ser motivada pelo vinho. Não vou também entrar em delírios concorrentes com a RTP ou a SIC que apostam na dança Para nos secarem as meninges…..
A verdade, verdadinha toda, é que felizmente tenho uma memória à prova de quase tudo e também não cultivo muito a distracção… De modo que….  eles nem sabem o mal que fizeram em sacrificar a nossa geração ao terror da guerra que aliás se cumpria desde o primeiro dia de tropa e estendia-se até ao último….. O que lhes terá escapado é que a coisa acabou por ser como, acho que já o disse noutra ocasião, uma montra da nossa sociedade, um museu vivo. Basta abrir a pestana e mantê-la aberta para enriquecermos mais, diria que exponencialmente, a nossa vida….. E isso sim era uma arma apontada ao coração - se é que o tinham - da nomenclatura do facho, e seus derivados….
O Vinho, era pois, em setenta e um, setenta e dois do Século passado, um garboso mancebo, que recebera essa alcunha obviamente por ser anti- abstémio militante. Lembro-o um mocetão largo e forte sem ser gordo e sem ser também muito alto. Vermelhusco nas faces e incrivelmente fogoso tipo Obelix…. Parco de palavras era no entanto alegre sem ser brilhante, mas agradável de um modo geral, devido à espontaneidade das suas reacções, a sua  alegria era quase infantil de tão autêntica.
Ora o Sr. Major Efectivamente, já nosso conhecido vem até à nossa companhia e entre outras coisas disse-me:
- Efectivamente a tropa anda ociosa e isso não é bom para ninguém!
Veja lá nas NEPES qual é instrução para os prontos e durante uns dias vamos fazer qualquer coisa que os ponha a mexer. E eu pensei cá para comigo: a mexer põem-se eles e mais depressa do que dá para ver….. Mas claro que não aduzi coisa alguma….. A não ser que iria tratar imediatamente disso. Obrigado, disse em resposta o Major.
Ora o que é que dizia o manual acerca de treino para aqueles mariolas! Tão só jogos! Disto e daquilo mas jogos…. Armado desses argumentos falei lá com os “Opinian macker’s” da rapaziada. Que sim senhor o homem até pediu….. É pá temos que fazer o que ele diz senão vem “p’ráí” um “Chico da merda” e estamos feitos…. Vá vejam lá se amanhã não batem todos a asa e ficam aí na formatura uns quantos para fazermos umas jogatanas…..
E assim se fez que na tropa a velhice é um posto. Os mais velhos seguraram os outros e lá fomos em formatura e tudo até ao campo de jogos. Fizemos questão de passar pelo Nosso Major Em continência a que ele correspondeu visivelmente satisfeito….
Uma vez no campo de jogos consultamos os folhetos e o que dava assim para fazer, dada a falta de material era a corda humana metade para cada lado a puxar…. a puxar….. até que uma equipa cedesse. E pronto….
Vamos começar…. quem escolhe primeiro é o Furriel mais velho…. Era eu e escolhi logo o Vinho…. Para além da sua força descomunal ele era também um dos indivíduos mais populares do regimento…. Os maçaricos olhavam para ele num misto de admiração e enjoo. E porquê? Porque aquela alma às refeições batia-se com o seu quinhão e ainda comia o que os vizinhos dispensavam. De modo que à mesa do Vinho estavam sempre éne terrinas de comida de qualidade duvidosa, mas que para ele não oferecia dúvida nenhuma! E todo o vinho que fosse possível arrebanhar. Vinho…. quer dizer!  Aquilo parecia mais decapante que outra coisa…. nada que o demovesse de o empinar todo….. Glu----glu.-----glu  cá vai à nossa….
Bom garantido o concurso do Vinho para o meu lado sabia ter as minhas chances. O que nem eu nem ninguém esperava foi o que se desenrolou na sequência disto. A coisa foi assim, ainda hoje sou capaz de rir a rever acena….
Eu e o outro furriel no topo da corda agarrávamo-nos firmemente pelos braços. E os restantes atrás começavam a puxar em direcções opostas.  Pois não senhor. O vinho fila-me pela cintura levanta-me como um boneco e abana-me e puxa enquanto dizia: ÁH CABRÕES … QUEREM GUERRA É? De dentes cerrados e olhar furibundo, que eu me lembre não cheguei a por os pés no chão e andava ali num virote feito uma marionete com as articulações todas a articularem furiosamente numa estranha dança ( estão a ver… é esta a dança a que me refiro no título). Claro que toda a gente se atirou para o chão agarrados à barriga a rir perdidamente e foi uma vitória fácil…..
Quando ele me largou caí redomdinho no chão a rir . Mas ainda deu para ouvir o meu manipulador dizer:
- “Atão”…. Querem mais????? E mostrava uma fiada de dentes brancos no meio das bochechas de tomate saloio, abertas num sorriso de rapazola maroto.
Já nem jogámos à bola…..
Esta cena esteve na ordem do dia durante mais de um Mês…. Para mim durará até que o tal  Sr. Alemão  um tal Alzheimer tome conta de mim, o que espero nunca venha a acontecer. Valha-me o vinho  que segundo parece é boa prevenção contra  o Alzheimer….    
E tu amigo vinho, espero que não te tenham proibido de comer frugalmente e de beber jarradas…..
                                 António Capucha
                   Peniche, Setembro de 2010

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Efectivamente

à esquerda, posição de funeral arma


Efectivamente
Durante a vida cruzamo-nos com digamos que milhares de pessoas com quem estabelecemos mais ou menos relações, intimidades, raras vezes amizades, iden: ódios e raivas mais ou menos contidas E às vezes, a maior parte delas, não passa de uma cultivada e recíproca ignorância quase cerimoniosamente mantida, civilizada e tão oca como a caixa de uma guitarra.
A tropa do meu tempo entre várias coisa era uma montra de tipos… figuras, figurinhas e figurões. Tenho, “vivas com’á sardinha”, em memória episódios riquíssimos no material de que se fazem os sonhos. E por extensão os contos e “estórias”.
Respigo assim ao acaso uma de um Sr. Major que nos entrou pela casa dentro vindo não se sabe donde. O certo é que aterrou no R. I. 5 das Caldas da Rainha, (mulas 5, para os vaidosos da cavalaria) para ser episodicamente o nosso 2º Comandante da C. Cac. E da C. de Comando e Serviços.
Um pacato fim de semana, estava eu de Sargento de dia á Unidade. O bom do Sr.major,  cujo nome não retive,  porque até ser rebaptizado foi um fósforo e esse sim prevalece sobre o nome que os seus pais terão queimado as pestanas para seleccionar entre a panóplia de nomes de Santos , heróis biblicos , gregos e romanos clássicos  que assentassem bem num futuro major…. a sua figura essa assentava que nem uma luva naquilo que nos habituamos a associar a um Major de Infantaria…. Estatura mediana, “peitaça” forte e proeminente e o andar à cavalo de cortesias….
Estávamos uns quantos malandros a espevitar o passo ao tempo, no meio da parada,quando o Major, na altura ainda Major X, me chamou e disse.:
- Furriel, recebi agora uma ordem do Q.G. da Região para organizar um pelotão de homens para fazer a guarda d’honra ao funeral do General Tal e tal. Ora em contas rápidas lá lhe fui dizendo que entre prontos e graduados não havia com que perfazer trinta homens. Pragmático aduziu: então arrebanhe aí uns maçaricos e pronto….. Pode tratar disso? Claro meu Major! Juntamos os pobres coitados ali mesmo na parada e o Major expôs a situação. Durante a sua alocução notei que usava com frequência notável o termo: EFECTIVAMENTE, como uma muleta discursiva…. A páginas tantas sai-se com esta: efectivamente o tempo fenece! A malta contorcia-se mas susteve a gargalhada…. Ele também não se deu por achado, nem pareceu perturbado. Efectivemente tínhamos homem….
Efectvamente, Furriel estes homens chegam. A coisa assim já fica efectivamente bem composta….
Bom em conclusão daqui a meia hora todos aqui em farda nº 2…..
Assim se fez que Major pode…. E manda.
Até que um macacão diz: meu Major, ninguém se lembra de como é que é isso do funeral arma…..
O Major olha para mim….. Abano a cabeça significativamente…. Ele terá compreendido….. claro um Furriel quase a ir p’rá peluda!!!!
Olhou implorando para o oficial de dia um veterano também ele e a resposta deste não diferiu das restantes…. O contrário é que seria estranho terá pensado… Efectivamente há-de ser o mais importante p´rá tropa essa patacoada do funeral arma.
Para os que não sabem, e espero que sejam muitos, o funeral arma é uma manobra feita com a arma que os bacocos que se dedicam a criar estes salamaleques acreditam ser uma manobra de expressão militar que evidencia o respeito devido à morte dos camaradas. Tal com o ombro arma corresponde à continência e o apresentar armas é uma honraria destinada aos oficiais superiores ou a visitas importantes …..
Esta sucessão de acontecimentos e a reacção do Major, agradou-me…. O seu pragmatismo o seu sentido prático das coisas distinguia-o da maioria dos restantes oficiais. Tão pomposos como idólatras dos seus quid pro quo's….. Dizem que reside aí a sua força e o segredo da recantada disciplina. Quarenta e vários meses que por lá andei, não deram para inferir isso ….. Devo ser burro!!!
Engracei com o Major. Eu e todos os outros. Igual a si próprio declarou o Sr. Oficial de dia e o nosso Furriel farão o favor de resolver este detalhe. E sumiu-se dali , acredito que para nos deixar mais à vontade.
Lá inventámos um salamaleque ponposíssimo em cinco movimentos. E ensaiámo-lo até a coisa sair mais ou menos bem…. Sincronizamos os movimentos para as salvas de tiros e fomos para a sala dos Sargentos malhar uns púcaros e umas sandes de presunto, as melhores da unidade…. Quando o Major; já e sem remédio: Major Efectivamente nos procurou, estava tudo assegurado, foi enfiar toda a gente na camionete e ficamos a rezar para que os maçaricos não dessem casa….
Mais tarde viemos a saber, quando eles regressaram que correu tudo lindamente. Apenas um maçarico não deu conta que ainda tinha a bala na câmara e disparou felizmente para o ar, não acertando em nada. Havia um morto mas esse já o era, portanto tudo como dantes Quartel General em Abrantes…..
Mais tarde ainda o Regimento foi louvado pelo pundonor com que desempenhou a guarda d’honra ao Ex. General….. Categoria!!!!
Agora o que não lembra ao diabo, mas lembrou à tropa, foi fazerem deste vosso amigo Encarregado das Obras do Regimento….Deram-me uma GMC, daquelas que sobem paredes a pique e meia dúzia de artífices manhosos, tão manhosos como o mestre d’obras…. Ou seja: EU.
Cruel, o destino fez-nos cruzar de novo, o Major Efectivamente e eu próprio, na minha nova qualidade….
Furriel!!!! Há-de arranjar aí uns quantos Homens para capinar…. Efectivamente o capim está muito alto e não pode ser…. No dia seguinte esforcei-me para cumprir as ordens expressas dele, Mas…. ‘Tá bem ‘tá….. Mal acabou a chamada aquilo pareciam pardais a dar de frosques.
Vou dali ao gabinete dele confiando na seu sentido prático das coisas ….. Meu Major:
Isto é complicado….. isto é malta que só está à espera da peluda, mal olho para o lado para fazer a lista, Já debandaram todos . Alguns moram aqui perto têm as suas hortas e tal, outros vão tentar ganhar algum a qualquer lado, de modo que, se o Meu Major concordar eu vou à cidade comprar um Herbicida total e  aplica-se  no capim…. Boa ideia Furriel… Faça lá isso.
 Assim se fez que Major, como já disse, manda muito!
No dia seguinte e por sugestão dele cercou-se com cordas uns quantos metros quadrados de erva alta. E nós mesmos com o pulverizador burrifamos a coisa….
Bom , dizia: Furriel , efectivamente agora só nos resta aguardar….
A partir desse episódio todas as manhãs durante a formatura de serviço O Major lá ia  à cercadura sem que mudança alguma ocorresse. Pelo rabo do olho eu seguia-o e adivinhando-lhe os pensamentos e em antecipação vou ter com ele levando a embalagem do produto…. Meu Major… Só agora reparo que isto só faz efeito após uma chuvada…. Está aqui olhe! Ele olhou e abanou a cabeça que sim …. Que entendia.
Um belo dia chega a peluda  e eu já desfardado fui ter com ele ao pé do capim e disse Meu Major…. Vai ver que resulta….. Então vai embora pergunta.
Sim acabou-se!!!!
Então muitas felicidades.
Igualmente para si Sr. Major….
Apertamos efectivamente as mãos…. E lá ficou a vigiar esperançoso a morte do capim e eu fui dali para a vida………

                                  António Capucha
                         Peniche, Setembro de 2010.

domingo, 26 de setembro de 2010

Escola da Bica do Chinelo

Arcadas da antiga Escola da Bica do Chinelo ao fundo. Demolida por motivos óbvios.

Escola da Bica do Chinelo 

 Seguindo o caminho de casa, ziguezagueava ao sabor das trajectórias caprichosas que as pedras “pontapeáveis” tomavam a cada pontapé que lhes afinfava a fim de meter golo nas poças d’água. Como uma banda sonora que complementava a acção, imitava em surdina o “vozerio” da assistência e debitava como uma ladaínha o “relato” como o ouvia na “tlefonia”.
A sacola às costas oscilava a compasso e ameaçava regurgitar o conteúdo constituído pelos parcos haveres de um aluno da primeira classe da escola primária da Bica do Chinelo. Nestas manobras já tinham sido imoladas duas ou três “penas”, que eram uns “pauzinhos” em ardósia para escrever na “pedra”, um quadro em miniatura igualmente em ardósia.
Dali à Rua do Jardim, onde morava, era um pulinho tão pequeno que se dava em menos de nada. O que significava que o que o separava das “coisas da escola” era igualmente escasso em distância, logo em tempo. Aquele desafio de futebol com os calhaus do caminho era portanto um pauzinho na engrenagem implacável do tempo. O resto era uma árdua e empenhada mise-en-scène, de um jogo de bola cuja “grande área”, em plena poça d’água, era palco da disputa com imaginários adversários. Pontapé daqui, canelada dali, rodopiando em fintas siderais e sarrafada de “meia –noite” até o meter, ao calhau, bem na parte mais funda e aí sim, o locutor gritava gooooooolo…… Travassos….. Gooooooolo do Sportíng……
As botas? Pois não sei! O estado em que ficavam????…. Ora pois bem …. Molhadas e “esbeiçadas”. Nada de grave, julgo.
Foram feitas pelo sr. Chico, sapateiro da aldeia da sua mãe na Beira Baixa, dois números acima que o rapaz estava a crescer…. E eram tão sólidas e façanhudas como a agreste paisagem beirã. Com sola de pneu e gáspeas de couro, todas cosidas à mão e protectores nos calcanhares e biqueira, pregados com cravos de ferradura e rebitados.  Um autentico tanque diria eu….Os pés, de permeio com um par de grossas meias de lã, estavam quentes, já se deixa ver, seja pela estanquicidade do artefacto, ou pela azáfama irrequieta do encontro de bola. Vá lá saber-se!!
Bom…. Se a ideia era enganar o tempo, eficácia não lhe faltava, pois já ia p’raí em dez a zero e ainda não tinha percorrido mais de um quarto da distância a vencer… Era coisa para acabar lá p’rós cinquenta a zero, digo eu. Ao triste do adversário valia-lhe o facto de ser imaginário, virtual, ainda assim havia de ter um óptimo feitio e um “fairplay” à prova de tudo, para suportar tão avassaladora superioridade e tão humilhante resultado.
Mas é assim na imaginação dos rapazes….. Não há lugar ao perdão bem como não o houve à perversão no desenrolar da partida. Não há truques e nunca é falta…. Penalties?????  Nem vê-los….
Não há conflito. Nem para as botas….
A verdade é que as faces do “lingrinhas” estavam afogueadas. Quem passava era disso testemunha e também podiam, se quisessem, testemunhar a irradiante, diria contagiante, alegria do futebolista. Mas não. Decididamente não queriam…. Quem passava abanava desaprovadoramente a cabeça, ou sem se conter dizia: Áh rapaz de má raça….. Havias de andar mas era descalço…. Já davas valor às botas! Mal-estreado do moço!
Que sabe essa gente de botas feitas por medida pelo Sr. Chico, lá da vetusta Tinalhas? Nem sabem do tamanho e doçura das suas melancias…. Do Padre Zé que dizia a missa lá num Latim que era só dele…. E a festa da Rainha Santa Isabel, com a banda a troar: PUM…PÓ…PÓ… TCHIM…. PÓ…PÓ…. TCHIM… PÓ…PÓ…TCHIM…. E que parecia deslizar pela rua abaixo, por entre as colchas bordadas penduradas das janelas…  E de “adiufes”, Sabem de adufes?
Quanto mais saberem de botas!!!!
A multidão grita: SÒ MAIS UM…. SÒ MAIS UM… SÓ MAIS UM…
Bem… Isto hoje está mau…. Vai chegar tarde a casa. A mãe há-de ficar ralada….
Não faz mal….
Ele não o dirá – porque não cabe aqui o discurso directo - mas tenho a certeza que lhe terá passado pela cabeça dizer-lhe:
Deixe-me ficar mais um bocadinho…. Depois a mãe bate-me!!!!!



                                                      António Capucha
                                      Vila Franca de Xira, Agosto de 2010

Dedicado a todos os meus colegas da Escola Primária, à minha tia Odete, tinalhense de gema (que também foi professora nessa escola) e, claro à D. Conceição a minha professora…

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

A borrasca

Cabo Carvoeiro



A borrasca.


O vento estava algo forte. Mas isso não era de forma alguma desculpa para não sair para a tarde de outono, que, para o que havia ameaçado de manhã, estava até muito comedido.
A natureza forte do promontório do Cabo Carvoeiro, apresentava a sua variante: paleta de cinzas. É a minha preferida. Uma gama infindável de tons de cinza aqui e ali salpicada do dourado do Sol, dos ocasionais e breves rasgões no tecto de nuvens, que decoravam o mar como se fossem fitas de árvore de Natal. Estávamos todos na rua, eu a minha mulher a miúda e o cão a usufruir do facto de não haver nada para fazer. A não ser apanhar pedrinhas com pequenos fósseis de estrelas-do-mar (Crinóides) ou fazer bolinhos de barro e areia e também não deixava de ser interessante fazer covas entre as camarinhas Para fazer saltar coelhos que teimavam em não colaborar na brincadeira.
Coisas do arco-da-velha. Um dia em cheio…. Com este pensamento deu-me a vontade de uma bebida quente no bar empoleirado no Cabo, a ”Nau dos Corvos” ali mais à frente. Virei-me nessa direcção em meti pés ao caminho…. E quando cheguei à estrada apercebo-me de uma mancha de um cinzento acastanhado com raios e coriscos em todas as direcções como nunca vira igual. Vinha de Sudoeste e a galgar mar à força toda. Primeiro fiquei especado ante aquela manifestação de poder. Depois realizo o potencial perigo da coisa e grito para todos…. É lá…. Fujam para casa e aponto na direcção da borrasca. Nem pensaram duas vezes, ála que se faz tarde!!!!
Eu agarrei no cão que relutante lá deixou a pista dos coelhos, corro para casa fecho tudo às sete chaves estores e tudo.
Não chegou o relógio a cumprir uma volta do ponteiro dos segundos, e uma barulheira infernal, misto de chuva, vento e trovões em grande confusão, abateu-se sobre a casa parecia que ia tudo pelo ar. Apesar dos estores corridos entrava água como se a janela estivesse escancarada. Foram precisos vários minutos, não cuidei de saber quantos, para que passasse a nossa ansiedade. E bom…. Estávamos todos, e bem. Desta já nos safámos….. Saí para a rua e olhei de fora o casarâo. Aparte uma ou outra placa de “Lusalit”fora do lugar, um ou outro estore arrancado ou desencaixado, até que o casarão aguentou bem aquela coisa que ainda hoje estou para saber o que, e eu já tenho uma dose destas coisas. apreciável. Furacão ou esfola gatos, vá lá saber-se... Mas que foi o Diabo foi!!!!!
Chatice …. Já não fui ao bar. Os bolinhos de barro e areia desfizeram-se. Apenas a falésia dos Remédios a Berlenga e o mar estavam na mesma. Impávidos e serenos sob o Sol que os bafejava, em desafio gritavam: Manda-me dessas que dessas já cá tivemos muitas.
E querem saber uma coisa? Eu até acho que sim!!!! Hão-de ter sido inúmeras coisas destas que fizeram o conjunto arquitectural natural que nos deslumbra. Nós é que a provar que não somos perdidos nem achados nestas coisas, ficamos tolhidos de medo da natureza… Como se não fizéssemos parte dela…. 
Presunção e água benta cada um toma a que quer!!!
Isto aprendi eu naquele dia e muitas outras lições tenho aprendido e aprenderei, em circunstâncias semelhantes, desde que tenha a humildade e a clarividência de me aconchegar ao meu pequeno canto e esperar que a coisa passe…. È só o que podemos fazer….. Esperar que passe…..  

                                          António Capucha
                                  Peniche, Setembro de 2010

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Palhoça, ou: O escravo do amor!

                      


Palhoça, ou: O escravo do amor!
Todas as manhãs naquela caserna do R.I. 5 - Caldas da Rainha, após o despertar tocado pelo corneteiro dava-se o toque de alvorada privado da companhia de caçadores…. Era o Palhoça, assim chamado porque era essa a sua proveniência uma encenação mil vezes repetida mas sempre diferente….
Ora o bom do Palhoça, que dormia no beliche de primeiro andar, sensivelmente a meio da caserna, erguia-se da cama e punha-se de pé em cima dela, e ainda com as marcas da noite bem dormida e do calor da cama bem adivinhável por baixo das calças do pijama não é impunemente que se tem pouco mais de vinte anos e saúde a rodos. Que isto é como dizia o avô de uma pessoa da qual não divulgo o nome para eu próprio, não ser posto a pão e laranjas. O senhor em causa operário da CP no inicio do Século passado, Anarco- sindicalista, grevista e tudo! Era pessoa de palavra e trato fácil e dizia-me então com o seu ar de filósofo operário: Olha pá…. Debaixo dos pés se levantam os trabalhos. E debaixo dos lençóis se levantam os c……. Bom, rima com trabalhos e é substantivo macho e também plural……
Nestes preparos o Palhoça preparava a sua récita…..
E hei-lo que começa:
- É o palhoça….. O escravo do amor….. Com os olhos vendados p’la bandeira nacional….. Cruza e descruza os braços……. PALHOÇA….. O ESCRAVO DO AMOR!!!!!
Isto assim dizia ele com o tom nasalado…. Que é como quem diz, com os dedos a apertar o nariz a imitar os altifalantes de corneta das feiras de então num Poço da Morte virtual…… Nasalado diz-se sem propriedade porque devia dizer-se inasalado isto porque ao som normal é retirado a caixa de ressonância natural formada pelo labirinto acústico do nariz e as fossas nazais por onde sai uma componente do som sem o qual chamamos nasalado…… Mas porque se lhe retirou oefeito nariz devia dizer-se anasalado ou inasalado. Bem Acho que mais ninguém interrompia uma descrição tão empolgante para perorar sobre este assunto…. Mas que querem é mais forte do que eu….. Voltemos pois portanto à “estória”
Mal ele começava a “converseta”, era a deixa para o restante pessoal atirar botas toalhas e mais ou menos tudo o que exprimisse o nosso enfado e não fosse suficientemente expressivo para o aleijar…..
O nosso Homem já nem sabia muito direito onde é que tinha ido buscar a ladainha, sobretudo aquela do: Escravo do amor…..Mas que merecia umas botas e chineladas…. Áh lá isso valia…..
Amores potenciais, desmedidos e vontade de andar de mota às voltas no Barril de fundo arredondado que era o Poço da Morte.
Não sei se estão a imaginar bem o filme. O rapaz de pé em cima da mota, as pontas da bandeira Nacional a dardejar ao vento da deslocação do ar e o cabelo a esvoaçar, braços abertos que cruza e descruza, camisa negra aberta até onde a decência da época o permitia, botas em couro preto de cano alto…. E aquela coisa berrada nos altifalantes a condizer com o enorme sorriso de felicidade de vencer o tempo, menos um dia para a “peluda”…..
Nunca mais desde esses tempos, o vi. Ou a qualquer outro daquela coisa que foi a tropa. Também não soube de qualquer encontro da naftalina, da C. Caça. de mil novecentos… e tal….. E se houvesse não sei se iria. Acho que sucumbiria a uma apoplepsia ao ver o Escravo do amor careca gordo e a chamar-se Jacinto…….
Foram pessoas como ele que evitaram que aquela passagem pela ordem militar fizesse mais estragos do que fez…….

António Capucha
Peniche, Setembro de 2010

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O palácio do Sr. D. Miguel

Palácio do Sr. D. Miguel

O palácio do Sr. D. Miguel, Príncipe Real da casa de Bragança. Foi abaixo nos idos de mil novecentos e setenta em plena Primavera Marcelista do antanho fascista. Mas como se deixa ver de primavera só tinha o nome que a invernia era a mesma. É que sob a capa já muito remendada da sisudez e respeito pela tradição (valores alardeados pela direita mais reaccionária ainda hoje), a realidade é que a venalidade era a norma nesta como noutras coisas….  Associado como era timbre na altura, à estupidez, ignorância e desrespeito pelo património colectivo que é a nossa Historia…Aliás daqueles tempos espera-se quase tudo. O pior é que parece que o vício pegou e tornou-se quase norma sacrificar valores históricos ou culturais, em nome de eventuais factores de progresso mais que duvidosos. E atenção.... Embora pareça, não foi uma invenção dos vilafranquenses.ou dos portugueses. É mais fruto da arrogância intelectual da fase civilizacional que estamos a atravessar.  Quem manda pode e os que podem mandam que tudo seja descartável face ao que eles decidem ser o progresso ou outra qualquer manobra para encobrir as canalhices que nem me dou ao trabalho de descrever. E isto já vem muito de trás como adiante se verá.....
Voltando ao palácio….. Não sou especialista mas algo me diz que ele não era um primor arquitectónico. Mas o seu valor Histórico era  inegável.
Quando o D. Miguel se juntou às tropas absolutistas que escolheram Vila franca para sediar, é natural que tenha pernoitado no casarão, e lá tenha reunido com os generais dos revoltosos. Com certeza que não terá sido no 14 e 8, ou no Cabeça de Toiro de permeio com uns “tintois” de respeito e umas pataniscas de bacalhau que se conspirou....….
Embora pelas piores razões A chamada Vilafrancada, que é o único facto que mete Vila Franca na História de Portugal sem que tenha havido a necessidade de o Prof. José Hermano Saraiva, desenterrar factos duvidosos como quem colhe grelos na horta. Temos o nosso lugar garantido na História e como disse, embora não seja pelas boas razões: Porque se a revolta absolutista triunfasse significaria um retrocesso Histórico de monta. Que não se deu porque os absolutistas e o infante levaram para "tabaco" das tropas constitucionais que se lhe opunham. E por essa razão Vila Franca, passou a ser chamada de Vila Franca da Restauração.... Isto Século e meio antes de abrir o "Zé dos Frangos" que inaugurou outra fase de real progresso económico mas não só, assente no florescimento Também da restauração (esta outra de faca e garfo) vilafranquense.... 
Essa razão não é porém de tal monta a que o edifício em causa fosse descartável. Os mamarrachos que hoje ocupam o seu lugar podiam ser feitos em qualquer outro lugar, só que, as casas ficavam a ter valor diverso – inferior – porque aquele sítio é que é central…. Em pleno Martir Santo exactamente em frente à igreja. 
Mais tarde na primeira república nas greves do principio do Seculo XX, aquela Estória dos operários de Alhandra e dos “cagaréus” os Vila-Franquenses, ou está mal contada ou também não abona muito em nosso favor. Parece existir a forte tendência para fazer tudo errado e estar sempre do lado errado das coisas, Julgo no entanto que estas ultimas se devem mais à rivalidade entre ambas as Vilas, expressas mais recentemente na disputa da verdadeira sede natural e Histórica do Neo-Realismo. Coisas deste tipo são para derrimir no futebol, já o foi no Remo e na Vela, mas ao que parece nem uma nem a outra vila têm economias capazes de sustentar uma equipa de futebol, suficientemente vingadora das afrontas dos seus vizinhos….
Noutro lado, na rua do Jardim , por cima do CASI e em frente ao Ateneu, existia uma correnteza de casas pequenas, modestas e iguais, que terão sido, digo eu, uma vila operária  e mais à frente de Sul para Norte do mesmo lado existiu um pátio tradicional com equipamento colectivo – os tanques de lavar a roupa estendal etc. Hoje é um altaneiro bairro de apartamentos caros onde aceitando entre a seu “porte” ostensivo  e pedante, a Junta de Freguesia do burgo) nesse pátio  morou um maioral a sério…  A cujo garbo equestre eu rapazola assistia da minha janela todas as tardes. Estas casas e o pátio que já teriam sido construídas em cima de um jardim e do sítio também desapareceu uma Igreja gótica.   
Um tudo nada mais abaixo onde hoje é rua ou calçada da Fonte Nova Que desemboca no largo do Adro  da igreja Matriz tudo isso era um cemitério e desse facto possuo a prova pois umas obras aí havidas em meados de cinquenta do Século passado revelou um sem número de ossadas humanas.com restos dos caixões. Claro que foi um acontecimento no bairro e uma festa para a rapaziada....                                        
Continuando para Norte, idos da rua do Jardim,  havia uma vila operária, num plano elevado em relação à rua e que ia quase até à quinta onde morava o Dr. Luis. Sensivelmente a meio tinha um arco que ligava a vila a um baldio nas traseiras onde faziam umas hortas. Nesse bairro morava uma personagem que me mantinha pendurado da janela com gosto… Era um antigo operário ao tempo reformado, que vestia ainda e sempre o seu fato de macaco. E nesse preparo ia de casa, uma ou duas vezes por dia, com um pequeno canito atrelado a uma carroça pintada a preceito e com campainhas e guizos, e à giza de condutor levava empoleirado um galito có-có. Linda procissão…. Que se detinha ali na rua direita na tasca do pai da Júlia Que tinha uns tonéis que “amandavam ventarolas” À porta da tasca com dois degraus estava uma velhota com um fogareiro aceso e um cesto de verga com ostras apanhadas nesse dia ali abaixo no Tejo. Ora o mau Habito que se cultivava na tasca ( como é sabido nas tascas só se adquirem maus Hábitos) era comprar à velhota uma ostra que ela punha a abrir sobre o carvão, pulvilhar com um pouco de sal e pimenta preta que a senhora fornecia e espremer umas gotas de meio limão. Assim munidos entravam na taberna e pediam um copo de vinho e estava feita a boca para o almoço ou o jantar…. Não sei se o Sr. D. Miguel sabia disto ou mesmo se as tropas da vergonha absolutista cá estivessem por esta razão. Isso já atenuava a ignomínia de nos terem escolhido para base da revolta. 

O Infante D. miguel junta-se às tropas absolutistas em Vila Franca de Xira
                                                 


Não sei que tipo de apoio receberam da população. Agora da parte da nobreza é seguro que recolheram os entusiastas “vivós” e foguetórios. Ao que parece, embora nem todos os nobres fossem absolutistas, uma boa parte sê-lo-ia... Quando os  Filipes de Espanha tomaram conta disto tiveram mais apoio da nobreza de Portugal do que seria decente e patriótico esperar. A nobreza preferia a monarquia espanhola que era mais tradicionalista e bem mais rica e por isso distribuiria por eles mais bens e honrarias que a casa real portuguesa, bem mais parca de recursos e com menos com que  partilhar com esta gente supostamente patriótica… Bem adiante…
Também parece que apostaram no cavalo errado porque os reis de Espanha eram mais magnânimos, sim senhor,  mas com os fidalgos espanhóis e os nosso ficaram a torcer a orelha e a chuchar no dedo: Salvo raras excepções a nossa nobreza efectivamente era para além de venal, sumamente estúpida. Porque é que nós os vila-franquenses, havíamos de ser perfeitos e menos abéculas quando se tratava de escolher um lado das coisas que é de regra terem sempre dois lados. As ostras têm muito Fósforo (P) mas não o suficiente para transformar um bando de cagaréus “incultos” - é melhor dizer iletrados, que cultura tinham-na, e bem vincada.– em cidadãos clarividentes….  
Por último espero não ter que assistir aquilo que em jeito de profecia vou fazer. Mas a expansão do lobie do cimento é tal, que tem levado à cegueira, não já da destruição patrimonial, mas, e pasme-se, da duvidosa segurança do que é construído. A urbe de Vila Franca está prestes a abraçar o Monte Gordo e aquele terreno até ao maciço calcário é de terra não muito firme…. (eu próprio testemunhei deslizamentos de terras em todos os Invernos de muita chuva.) Ora isso associado ao peso do parque construído fará um belo

Vila Franca de Xira inicio do século XX .Ainda não havia a pedreira do António Maria .  é bem visível a natureza do solo abaixo do maciço calcário

”skate”…. Se ao terreno empapado e demasiado pesado lhe juntarmos umas abanadelas telúricas então o desastre parece-me inevitável…. O mesmo lóbie aposta espraiar-se para a Lezíria, por enquanto apenas na margem Norte… Mas até essa já parece excessiva.  Há que trava-los, se não vão deitar abaixo a capela da Senhora d’Alcamé para construírem um “ressort” de luxo onde a senhora é substituída pela de Fatima e vendida em pernoitas abençoadas e orgias com campinos autênticos de pampilho tudo…. É claro que é barrete……. O que trarão na cabeça… Os cavalos serão alados!!! 
Vá lá senhores importantes, que decidem destas coisas. Travem enquanto é tempo…..  Já se fizeram asneiras de mais. As referências que faço ao longo  deste texto, se pecam, é por defeito. Não se defende, não está dito em lado nenhum, que dantes é que era… É evidente que não era, casas vetustas e sem qualidade. Agora o que foi feito em seu lugar é excessivo e de beleza duvidosa… E sobretudo o seu volume, que impede linhas de vista que outrora faziam a alma e o ser da  nossa vila. Façam um favor a vós próprios e estudem bem a forma de consolidar os prédios da encosta do Monte Gordo…. E não permitam o desvirtuamento da Lezíria… Mais caixotes de cimento com mais ou menos cromados, fó-fós e luzinhas, mas caixotes… Não!!!!!
E o Cais senhores….. Devia ser tratado como uma pérola…. Não só por ter sido o berço da urbe, mas porque é efectivamente bonito… Não se trata só do que se vê de perto… Como na foto, é vista do rio que o cais e Vila Franca ganham relevo. É só mudarmos de perspectiva e descobrimos sempre algo novo e surpreendente. Agora encham aquilo de carros estacionados! E vão querer sair dali a sete pés. É do interesse público preservar as belezas herdadas, valoriza-las. E não permitir que como na rua direita o trânsito continue a devassá-la,  à  pala da falácia de alguns comerciantes que afrontam o interesse público com desculpas esfarrapadas. Sabem o que é autoridade democrática????…. Então o que é que se passa. Não são suficientemente autoritários ou não sentem o legado da autoridade que o povo lhes conferiu. Ou não são suficientemente democratas?
Também se pode dar o caso de não serem suficientemente esclarecidos para entender o que é de interesse público.... Mas é para isso mesmo que há especialistas. O que eu não sei é se será preciso a opinião de um especialista para realizar que um "ressort" de luxo Com campos de golf e tudo, vai na Lezíria ou nos Mouxões do Tejo tão bem, como uma viola num enterro....

 
Cais de Vila Franca de Xira
                          
                           António Capucha
         Vila franca de Xira, Setembro de 2010

PS - Esta peroração teve o inestimável apoio do Ex.º Mestre em História Zé Costa, que faz o favor de ser meu amigo. Quero deixar público o meu agradecimento que já fiz em privado.....

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

"Manél" o matador de cobras




“Manél” o matador de cobras
Palavras não eram ditas já o pássaro ia no ar… E a cobra, dengosa, desenrolava-se da mola que formara para saltar e aparentando desdém parte dali, por entre a erva seca da charneca.
O alecrim e rosmaninho expeliam fragâncias que perfumavam o ar. E o Sol, aberto, desbragado, castigava o ambiente com o seu olhar de rei.
Um fio de suor corria-lhe da fonte até ao queixo percorrendo-lhe a face imberbe de menino.
Um pouco mais à frente um dos seus tios agachado armava um dos “costelos” que traziam para armar aos pássaros. Mete-lhe a “formiga d’asa” na armadilha e disfarça-a com restolho folhas e ervas. Ouve então o sibilino silvo da cobra a pouco mais de um metro dele… Era preta e estava pronta para saltar-lhe em cimo e morder-lhe… Lentamente ergue-se apanha um calhau de respeito do chão, e como um raio atira-o à cabeça da bicha que ficou a contorcer-se e a rebolar com a cabeça mais achatada do que já era e a boca retorcida…. Os seus olhos de menino, ávidos, seguiam a cena gravando meticulosamente na memória, cada detalhe, sulcando-a bem. E de tal maneira bem ficou, que, ainda hoje lhe parece que a está a ver. Foi isto que lhe ficou daquela manhã de Julho de mil novecentos e cinquenta e qualquer coisa, seis, sete, ou oito.... sei lá!
Antes de irem armar aos pássaros, foram apanhar “formigas d’asa” que são como o nome indica umas formigas grandes e aladas,  que naquela época do ano eclodem e  são assim como que uma orgia alimentar para a passarada da charneca envolvente da Aldeia de Tinalhas… Como em tudo o mais, a relação das pessoas da terra com a natureza,  são de respeito, não é como, quando e o que elas querem., mas sim quando a natureza está receptiva para isso e o autoriza…. Mas o que é importante aqui dizer é que ele , o gaiato, não recorda uma centelha do que foi essa caçada das formigas, Nem do caminho que fizeram desde casa, tão pouco o regresso está presente. Este episódio - da cobra - está assim como que suspenso do tempo e a valer por si só desgarrado de tudo o que o precedeu e o que se lhe seguiu…. O seu tio “Manél”, não era um atleta, tão pouco um atirador especial.  Mas aquela pedrada certeira na cabeça do que sei agora ser, melhor - ter sido - uma víbora, esse sim é um acto memorável. O Rambo que nos entra pela casa dentro sem pedir licença e sem que tenha sido convidado, ao pé dele é um caldinho de galinha…. Um produto de segunda escolha, que não sabe distinguir uma víbora de um carapau. E por isso desanca ambos. Isto porque no fim só pode sobrar um de pé, e manda o guião que seja ele…..
Mais logo depois de meter os passarocos caçados na gaiola grande do quintal. Um deles era redondo e gordo e cantava como se o estivessem a matar, os pintassilgos  esses chilreavam comedidos e serenos, parecia que estavam em casa....
Como íamos dizendo mais logo, o almoço era devorado na "broa", porque dalí  haviam de ir à festa da Raínha Santa Isabel, e ele estava autorizado a macaquear atrás da banda onde tocava o “Zé Coradinho”  que também era o “choufeur” da “camionete” que fazia a carreira para Castelo Branco… Mais lá para o fim da tarde quando o calor abrandasse, haveria de ir ver o jogo da bola, solteiros contra casados onde o seu herói, o imérito matador de víboras, ia marcar um “golaço”, assim cá de fora da rua…. Sorte????
Não senhor…. Pontaria de matador de cobras é o que é……


                   António Capucha
Vila Franca de Xira, Setembro de 2010

Ps – Esta é uma homenagem singela, mas sentida, ao meu tio Manuel recentemente desaparecido.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Tenha paciência!



miradouro de S. Catarina
 Tenha paciência!
 António Germano, acordou ao chiar de travões, aquele inconfundível chiar dos travões de um comboio…. Aço contra aço …. Uma zoada de respeito….. Acordou portanto, olhou pela janela e ainda meio estremunhado intui estar a chegar a S. Apolónia. Sai do Comboio para a gare, e olha o relógio na parede um pouco mais à frente. Falta hora e meia para a sua hora de entrada no trabalho, estava nas suas sete quintas …. Tinha mais que tempo de ir a pé dali até  perto do Bairro Alto na rua de S. Marçal, onde ficava o seu serviço.
E o prazer que lhe dava este rasgar de  Lisboa de lés a lés. Pela beira rio até ao Cais do Sodré onde metia pelo largo de S. Paulo e depois pelo elevador da Bica, rua do Século…. Paragem obrigatória para uma “bejeca” bem fresca, no Tónho, mesmo ao lado da Academia das Ciências. Este era o trajecto que normalmente fazia de há muitos anos aquela parte. E familiarizado que estava com os cenários  e as coisas e pessoas, com quem sistematicamente se cruzava, como bom espécime “portuga” não tardou a que trocasse com umas quantas pessoas os habituais e educados: bons dias, ou boas tardes, conforme a hora e o local, como diria o  Artur Agostinho. Nesse dia porém ocorreriam umas quantas coisas que lhe ficaram gravadas na memória. Primeiro, uma rapariga que ele associava à Bica, surge-lhe ao caminho no Cais do Sodré e em propósitos que inequivocamente o surpreenderam. A moça tinha um ar de quem já não era menina, mas de olhos muito vivos sorriso fácil, simpático e voz cristalina de fadista…. E assim  lhe disse cristalinamente: Então filho queres ir comigo? A surpresa foi total aquela cara ali não estava certa e não batia certo o que dizia .Mas era ela, seguramente o era. - Por essa altura, e sem saber explicar muito bem porquê,  desenvolveu o hábito, como outro qualquer, de responder a tudo e a nada com o sacramental: Tenha Paciência! -
E o tê-la visto assim travestida de prostituta, remeteu-o para as reacções automáticas e lá saiu à pergunta que ela lhe fizera, o incontornável: Tenha paciência!!! Ao que ela, algo desalentada, ripostou:
- Paciência tenho eu, que ando aqui desde manhã e ainda não fiz nenhum!!!
A remoer naquilo seguiu o seu caminho a digerir, como quem remói pedras, deixando o pensamento correr os quatro cantos dos mistérios que levam uma pessoa comum, à profissão mais antiga do mundo, dizem. Absorto e distante, sobe o elevador da Bica e em vez de ir para a rua do Século como sempre fazia, dá com ele no largo de S. Catarina, com o seu Adamastor com ar de mendigo zangado. Na mão esquerda reconhece o peso e o volume do livro que andava a devorar: O ano da morte de Ricardo Reis. Cujo Personagem morava ali numa das travessas adjacentes ao largo. Ali ficou olhos perdidos no Tejo a estoirar razões e martirizar a mona com as sensações que o livro lhe trouxera e as que experimentava presencialmente. Entre outros que ali estavam a curtir uma tarde de Sol, procurou um que se parecesse com a ideia que fazia de Ricardo Reis. Mistura não ponderada dele próprio e o de quem era heterónimo: Fernando Pessoa, com provável mistura de próprio autor do livro: o José Saramago - Isto porque estou em crer que todos os autores literários emprestam sempre um pouco de si próprios ás suas personagens. É um subtil processo de desnudamento intelectual que atesta a sua honestidade criativa….. Isto tudo, aliás, este tão pouco do tudo que abarcava, realizou ele ali debruçado do varandim do largo de S. Catarina.
Bom foi-se dali antes que não lhe sobrasse tempo de beber a refrescante cervejola no tónho…
Um prazer várias vezes renovado… Renovado porque não era apenas a cerveja que era outra, era sempre diferente e sempre novo. A paulinha com os seus olhos redondos e tristes, sempre tristes, pousou a garrafa e o copo na sua mesa, E o Nuno, o filho do Tónho sentado num banquinho à porta da tasca/ mercearia de bairro, dizia para a freguesia que se chegava de mais às caixas:
-  Não se mexe na fruta!!! Dizia com veemência…
Poi é…. Tenha paciência!!!!!
              
                António Capucha
Vila Franca de Xira, Setembro de 2010

quarta-feira, 8 de setembro de 2010

O Boi




O boi
No recreio da Escola da Bica do Chinelo, Não se brincava à “apanhada”. Sendo esta substituída pelo: brincar ao boi, que era em tudo semelhante só que, o que “ficava”, tinha um par de cornos enfiados nas extremidades dum pequeno pau, pegando-lhe ao meio com ambas as mãos e assim armado, perseguia os outros que lhe tentavam escapar. Quando filava algum dava-lhe umas cornadas, nada de grande monta, para além da vergonha de ter sido caçado. Ao contrário da “apanhada” o que “ficava”, aqui “ficar”, não é ser ou estar…. Era o que tinha que perseguir e apanhar os outros. O primeiro a “ficar” era sorteado pelo método da ladainha na qual cada um era apontado e ficava livre, ao ritmo silábico do: Um..dó …li… tá…. E por aí fora até ao ultimo que restava, que era o que “ficava”. Na variante do boi era bem mais simples…. O boi era o dono dos cornos, ser o boi não era uma selecção negativa e percebe-se porquê…. É que tinha o privilégio de dar porrada bravia, sem que isso fosse tido como acintoso. Os toureiros de circunstância ao contrário de na apanhada, não tinham direito a “coito”, assim chamado porque era onde, na “apanhada” nos podíamos acoitar, sem que “ficássemos” nós, caso fossemos apanhados…. No boi era como se sabe, nós pelo menos sabíamos, Para escapar ao Boi ou corríamos desesperadamente, ou subíamos às árvores, galgávamos muros ou íamos para qualquer lado onde um touro verdadeiro não chegasse. Coisa que dava origem a várias discussões acerca da plausibilidade dos movimentos do Boi… Aquilo era boi que até subia às árvores… O chamado Passarinho de quinhentos quilos!!!! Que só não voava, penso!!!!!
Esta brincadeira teria tudo a ver com o facto de sermos Vila-franquenses, uns de gema, outros de adopção. Naquele tempo os touros vinham pela Ponte sobre o Tejo, com campinos e cabrestos. Não raro, havia tresmalhes porque a populaça os chamavam: Éh boi… Éh boi… e lá derivavam do caminho para a praça de toiros. Um dia foi um lá para os meus lados e aquilo é como se fosse tudo automático…. Era hora de almoço e os homens saiam a correr de casa a perseguir o boi e as mães corriam à rua a arrebanhar os filhos mais pequenos… Passam uns homens a correr depois aparece o touro e após este dois campinos a cavalo numa correria desenfreada. “Granda” festa…. Isto em minha opinião prova que é algo mais do que simples, digamos que, desporto local… Isto já é cultura e ancestral, vem já no ADN…. Ou quase... Pelo menos aqui, é!
Mas íamos no intervalo escolar….    
Ao cabo de algumas cornadas, escondiam-se os cornos no sítio habitual, Porque a campaínha já havia tocado há algum tempo e afogueados e a transpirar voltávamos à sala de aula onde o: Dó....li… tá…. Cedia o espaço ao: 2x1 – dois; 2x2 – quatro; 2x3 - seis… Uma ladainha cantada a preceito….
A D. Conceição com o seu olhar penetrante, com o ponteiro marcava o compasso e estava atenta a qualquer fífia do orfeão….
Nas filas de trás negociava-se com o dono dos cornos a cedência destes para o dia seguinte. A poder de “chupas” de caramelo de açúcar envolvidos por papel colorido e um palito espetado, que uma velhota vendia ali mais abaixo, no largo do tanque das lavadeiras, a dois tostões cada. O dono dos Chifres lá ia lambuzar-se  até lhe doerem os dentes…. Que inveja….. Depois era esperar pelo outro toque de campainha, o da saída e  largávamos esbaforidos, como bandos de pardais à solta, como diz o poeta, eu não conheço imagem que melhor descreva a circunstância.
É Outubro são os primeiros dias de escola e de feira de Vila Franca….. E de Esperas de touros.
Com muito pouca fé pergunto: pai, posso ir?
Claro que não!
Ora …. Não faz mal …. Amanhã no recreio da Escola da Bica do Chinelo, há touros com cornos e tudo!

               António Capucha
Vila Franca de Xira, Setembro de 2010

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Berlengas


Berlenga Grande
 
Berlengas
A pedido de várias famílias lanço hoje e aqui, em jeito de apelo, não que votem naquele estúpido concurso das sete bestas do Apocalipse, Perdão!....Das sete maravilhas de Portugal, a saber: Cavaco silva; José Sócrates; Pinto Monteiro; Jaime Gama; Alberto João; etc….etc…. Como ia dizendo não estas, de comprovada maravilha, Mas outras…. E são tantas. Não votem portanto…. Vão mas é lá.
Quem me conhece sabe que tenho uma fixação por Peniche. De que gosto desesperadamente pelas razões que já não sou capaz de executar. Ainda assim sobra a saudade, e por via de dúvidas, a beleza quase selvagem de toda a península. A Papôa, o Cabo Carvoeiro e sobretudo as Berlengas são qualquer coisa de verdadeiramente extraordinário, melhor que chocolate, que dizem ser melhor que sexo, eu disso não sei grande coisa, porque não como chocolate há muito… Queriam o contrário era….. Pois fiquem-se pelo querer…. E querer por querer deviam é querer ir à Berlenga – A grande - que é a única para onde há transporte. Um barco (o Cabo Avelar Pessoa) muito bem equipado e de qualidade para a viagem que costuma ser uma agonia anunciada. Mas vale a pena Depois na ilha há passeios de barco ao redor da ilha de visita às grutas ou para levar pessoas ao forte de S. João Baptista 3€, Onde se pode ter uma amostra da coisa. Isto é: Dá para entender a beleza e condição selvagem do ecossistema que não se ensaia nada em agredir o nosso invólucro civilizado, normalizado e potencialmente doente….. Há portanto cuidados a ter. Levar muita água (a água lá vale ouro e é caríssima). Ter cuidado com o Sol que ali parece ser outro, mais forte, mais limpo, mesmo com o tempo encoberto os escaldões são frequentes e a evitar. Proteger bem a cabeça e os ombros. Comer coisas leves para estar sempre pronto a mergulhar. Fazê-lo sempre de olhos abertos ou então equipar-se para tal. O ambiente subaquático é único. Cumprir com rigor as indicações nos locais onde se assinala por onde caminhar ou proibir  a presença de pessoas.
A Associação dos amigos da Berlenga por exíguos 36 €/noite aluga um quarto duplo no forte de S. João Baptista e digo duplo, porque, e isso é outra regra fundamental. Por todas as razões e mais uma, não se deve ir para lá sozinho por questões de segurança, não aquela de que nos queixamos nas cidades, mas a que resulta de eventuais acidentes derivados da rudeza das condições envolventes. 

 Forte  de S. João Baptista

E depois há outra razão para não ir sozinho, porque abusar do chocolate engorda. E não queremos contribuir para o “desfeiamento” do estimado/a leitor/a.
Devia ser capaz de conseguir uma vaga de fundo que levasse toda a gente a procurar a Berlenga como local de veraneio e devaneio. Isto porque há interesses de um grande grupo turístico/financeiro, em transformar por exemplo o forte da Berlenga numa estrutura de cinco estrelas. Isso arreda-nos, à maioria da população, do usufruto daquela beleza em estado puro. Daí a vedar-nos o acesso à ilha e permitir as viagens apenas aos hospedes endinheirados e fazer lá um “casinô”, onde os broncos vão largar a “peseta”. Vai um pequeno passo. A tentação da autarquia, em ter uma estrutura de luxo no seu âmbito, que projectará supostamente o nome de Peniche na rota dos alarves do Jet Set, é grande. Pesem embora os preconceitos ideológicos da actual câmara, ensina-nos a prática que nestas coisas não há ideologia que valha, é o vil metal e o sucesso económico quem dita a lei e ponto final.
É pois portanto fundamental que o projecto dos Amigos da Berlenga tenha sucesso e tenha tanta adesão que crie uma vaga de fundo que dissuada aventuraras neocapitalistas. Porque a alternativa é deixar de haver Berlenga e passar a haver um Porta-Aviões a sete milhas e meia de Peniche  Com o seu Green de Golf e tudo…. Berlenga é que não…. A consolação que me resta é que os velhadas hão-de malhar como tordos com insolações…..
Bom, mas falemos do que ainda é o arquipélago.
Há curiosidades absolutamente surpreendentes. Por exemplo:
As ilhas são constituídas de Granito rosado. Uma variante granítica que apresenta um tom rosado o que revela a presença de óxido de ferro Em toda a costa portuguesa não existe tal rocha que só vamos encontrar do outro lado do Atlântico nas costas leste dos Estados Unidos e Canadá. Ora como sabemos que o continente americano começou há milhões de anos a emigração que agora foi repetida pelos Homens partindo da Europa e África para onde está hoje, e continua a afastar-se à razão de não sei quantos centímetros por ano. Tudo leva a crer que a Berlenga é uma parte da plataforma continental americana que ficou agarrada à velha mãe Europa… Um espanto portanto, a América aqui tão perto….. Isto para além de ser a maternidade de éne espécies marinhas quer sejam aves quer sejam peixes e sucedâneos….
 Quem me encomendou esta iniciativa passou no forte uma noite e diz serem indescritíveis as sensações de estar assim isolada e integrada naquela biodiversidade imensamente esmagadora, O silêncio e a escuridão da noite revelam um céu que a maioria dos fabianos nunca viu. Obriga-nos a reflectir na nossa realidade, no que de facto somos face aquela grandiosidade, que longe de nos agredir, nos envolve, domina e aquece…. Isto é, passamos a ser mais humanos, ou melhor, a ser melhores seres humanos….
Perguntarão e uma noite dá para perceber isso tudo…. E eu respondo, depende, se for um completo idiota, nem que estivesse um ano inteiro no céu ia perceber a diferença…. Sim dá responderia…. A mensagem é de tal maneira forte, que é como digo, só sendo completamente tapado…..
Os amigos das Berlengas estão acessíveis através da “internet” Até para o pagamento, tudo fácil….
È só querer ir…. Creio que até quinze de Setembro há carreiras regulares para a Berlenga Grande.
Toca a ir lá… E não esqueça muita água, roupa folgada, botas de montanha Chapéus de aba larga, um agasalho para a noite, equipamento de mergulho e sobretudo espírito aberto. Áh, se não tiver namorada ou namorado arranje um para a circunstância…..
Dá jeito…..Ter com quem partilhar o chocolate…. A bem dizer!
                 António Capucha
Vila franca de Xira, Setembro de 2010