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domingo, 26 de setembro de 2010

Escola da Bica do Chinelo

Arcadas da antiga Escola da Bica do Chinelo ao fundo. Demolida por motivos óbvios.

Escola da Bica do Chinelo 

 Seguindo o caminho de casa, ziguezagueava ao sabor das trajectórias caprichosas que as pedras “pontapeáveis” tomavam a cada pontapé que lhes afinfava a fim de meter golo nas poças d’água. Como uma banda sonora que complementava a acção, imitava em surdina o “vozerio” da assistência e debitava como uma ladaínha o “relato” como o ouvia na “tlefonia”.
A sacola às costas oscilava a compasso e ameaçava regurgitar o conteúdo constituído pelos parcos haveres de um aluno da primeira classe da escola primária da Bica do Chinelo. Nestas manobras já tinham sido imoladas duas ou três “penas”, que eram uns “pauzinhos” em ardósia para escrever na “pedra”, um quadro em miniatura igualmente em ardósia.
Dali à Rua do Jardim, onde morava, era um pulinho tão pequeno que se dava em menos de nada. O que significava que o que o separava das “coisas da escola” era igualmente escasso em distância, logo em tempo. Aquele desafio de futebol com os calhaus do caminho era portanto um pauzinho na engrenagem implacável do tempo. O resto era uma árdua e empenhada mise-en-scène, de um jogo de bola cuja “grande área”, em plena poça d’água, era palco da disputa com imaginários adversários. Pontapé daqui, canelada dali, rodopiando em fintas siderais e sarrafada de “meia –noite” até o meter, ao calhau, bem na parte mais funda e aí sim, o locutor gritava gooooooolo…… Travassos….. Gooooooolo do Sportíng……
As botas? Pois não sei! O estado em que ficavam????…. Ora pois bem …. Molhadas e “esbeiçadas”. Nada de grave, julgo.
Foram feitas pelo sr. Chico, sapateiro da aldeia da sua mãe na Beira Baixa, dois números acima que o rapaz estava a crescer…. E eram tão sólidas e façanhudas como a agreste paisagem beirã. Com sola de pneu e gáspeas de couro, todas cosidas à mão e protectores nos calcanhares e biqueira, pregados com cravos de ferradura e rebitados.  Um autentico tanque diria eu….Os pés, de permeio com um par de grossas meias de lã, estavam quentes, já se deixa ver, seja pela estanquicidade do artefacto, ou pela azáfama irrequieta do encontro de bola. Vá lá saber-se!!
Bom…. Se a ideia era enganar o tempo, eficácia não lhe faltava, pois já ia p’raí em dez a zero e ainda não tinha percorrido mais de um quarto da distância a vencer… Era coisa para acabar lá p’rós cinquenta a zero, digo eu. Ao triste do adversário valia-lhe o facto de ser imaginário, virtual, ainda assim havia de ter um óptimo feitio e um “fairplay” à prova de tudo, para suportar tão avassaladora superioridade e tão humilhante resultado.
Mas é assim na imaginação dos rapazes….. Não há lugar ao perdão bem como não o houve à perversão no desenrolar da partida. Não há truques e nunca é falta…. Penalties?????  Nem vê-los….
Não há conflito. Nem para as botas….
A verdade é que as faces do “lingrinhas” estavam afogueadas. Quem passava era disso testemunha e também podiam, se quisessem, testemunhar a irradiante, diria contagiante, alegria do futebolista. Mas não. Decididamente não queriam…. Quem passava abanava desaprovadoramente a cabeça, ou sem se conter dizia: Áh rapaz de má raça….. Havias de andar mas era descalço…. Já davas valor às botas! Mal-estreado do moço!
Que sabe essa gente de botas feitas por medida pelo Sr. Chico, lá da vetusta Tinalhas? Nem sabem do tamanho e doçura das suas melancias…. Do Padre Zé que dizia a missa lá num Latim que era só dele…. E a festa da Rainha Santa Isabel, com a banda a troar: PUM…PÓ…PÓ… TCHIM…. PÓ…PÓ…. TCHIM… PÓ…PÓ…TCHIM…. E que parecia deslizar pela rua abaixo, por entre as colchas bordadas penduradas das janelas…  E de “adiufes”, Sabem de adufes?
Quanto mais saberem de botas!!!!
A multidão grita: SÒ MAIS UM…. SÒ MAIS UM… SÓ MAIS UM…
Bem… Isto hoje está mau…. Vai chegar tarde a casa. A mãe há-de ficar ralada….
Não faz mal….
Ele não o dirá – porque não cabe aqui o discurso directo - mas tenho a certeza que lhe terá passado pela cabeça dizer-lhe:
Deixe-me ficar mais um bocadinho…. Depois a mãe bate-me!!!!!



                                                      António Capucha
                                      Vila Franca de Xira, Agosto de 2010

Dedicado a todos os meus colegas da Escola Primária, à minha tia Odete, tinalhense de gema (que também foi professora nessa escola) e, claro à D. Conceição a minha professora…

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