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sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Tenha paciência!



miradouro de S. Catarina
 Tenha paciência!
 António Germano, acordou ao chiar de travões, aquele inconfundível chiar dos travões de um comboio…. Aço contra aço …. Uma zoada de respeito….. Acordou portanto, olhou pela janela e ainda meio estremunhado intui estar a chegar a S. Apolónia. Sai do Comboio para a gare, e olha o relógio na parede um pouco mais à frente. Falta hora e meia para a sua hora de entrada no trabalho, estava nas suas sete quintas …. Tinha mais que tempo de ir a pé dali até  perto do Bairro Alto na rua de S. Marçal, onde ficava o seu serviço.
E o prazer que lhe dava este rasgar de  Lisboa de lés a lés. Pela beira rio até ao Cais do Sodré onde metia pelo largo de S. Paulo e depois pelo elevador da Bica, rua do Século…. Paragem obrigatória para uma “bejeca” bem fresca, no Tónho, mesmo ao lado da Academia das Ciências. Este era o trajecto que normalmente fazia de há muitos anos aquela parte. E familiarizado que estava com os cenários  e as coisas e pessoas, com quem sistematicamente se cruzava, como bom espécime “portuga” não tardou a que trocasse com umas quantas pessoas os habituais e educados: bons dias, ou boas tardes, conforme a hora e o local, como diria o  Artur Agostinho. Nesse dia porém ocorreriam umas quantas coisas que lhe ficaram gravadas na memória. Primeiro, uma rapariga que ele associava à Bica, surge-lhe ao caminho no Cais do Sodré e em propósitos que inequivocamente o surpreenderam. A moça tinha um ar de quem já não era menina, mas de olhos muito vivos sorriso fácil, simpático e voz cristalina de fadista…. E assim  lhe disse cristalinamente: Então filho queres ir comigo? A surpresa foi total aquela cara ali não estava certa e não batia certo o que dizia .Mas era ela, seguramente o era. - Por essa altura, e sem saber explicar muito bem porquê,  desenvolveu o hábito, como outro qualquer, de responder a tudo e a nada com o sacramental: Tenha Paciência! -
E o tê-la visto assim travestida de prostituta, remeteu-o para as reacções automáticas e lá saiu à pergunta que ela lhe fizera, o incontornável: Tenha paciência!!! Ao que ela, algo desalentada, ripostou:
- Paciência tenho eu, que ando aqui desde manhã e ainda não fiz nenhum!!!
A remoer naquilo seguiu o seu caminho a digerir, como quem remói pedras, deixando o pensamento correr os quatro cantos dos mistérios que levam uma pessoa comum, à profissão mais antiga do mundo, dizem. Absorto e distante, sobe o elevador da Bica e em vez de ir para a rua do Século como sempre fazia, dá com ele no largo de S. Catarina, com o seu Adamastor com ar de mendigo zangado. Na mão esquerda reconhece o peso e o volume do livro que andava a devorar: O ano da morte de Ricardo Reis. Cujo Personagem morava ali numa das travessas adjacentes ao largo. Ali ficou olhos perdidos no Tejo a estoirar razões e martirizar a mona com as sensações que o livro lhe trouxera e as que experimentava presencialmente. Entre outros que ali estavam a curtir uma tarde de Sol, procurou um que se parecesse com a ideia que fazia de Ricardo Reis. Mistura não ponderada dele próprio e o de quem era heterónimo: Fernando Pessoa, com provável mistura de próprio autor do livro: o José Saramago - Isto porque estou em crer que todos os autores literários emprestam sempre um pouco de si próprios ás suas personagens. É um subtil processo de desnudamento intelectual que atesta a sua honestidade criativa….. Isto tudo, aliás, este tão pouco do tudo que abarcava, realizou ele ali debruçado do varandim do largo de S. Catarina.
Bom foi-se dali antes que não lhe sobrasse tempo de beber a refrescante cervejola no tónho…
Um prazer várias vezes renovado… Renovado porque não era apenas a cerveja que era outra, era sempre diferente e sempre novo. A paulinha com os seus olhos redondos e tristes, sempre tristes, pousou a garrafa e o copo na sua mesa, E o Nuno, o filho do Tónho sentado num banquinho à porta da tasca/ mercearia de bairro, dizia para a freguesia que se chegava de mais às caixas:
-  Não se mexe na fruta!!! Dizia com veemência…
Poi é…. Tenha paciência!!!!!
              
                António Capucha
Vila Franca de Xira, Setembro de 2010

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