António Germano, acordou ao chiar de travões, aquele inconfundível chiar dos travões de um comboio…. Aço contra aço …. Uma zoada de respeito….. Acordou portanto, olhou pela janela e ainda meio estremunhado intui estar a chegar a S. Apolónia. Sai do Comboio para a gare, e olha o relógio na parede um pouco mais à frente. Falta hora e meia para a sua hora de entrada no trabalho, estava nas suas sete quintas …. Tinha mais que tempo de ir a pé dali até perto do Bairro Alto na rua de S. Marçal, onde ficava o seu serviço.
E o prazer que lhe dava este rasgar de Lisboa de lés a lés. Pela beira rio até ao Cais do Sodré onde metia pelo largo de S. Paulo e depois pelo elevador da Bica, rua do Século…. Paragem obrigatória para uma “bejeca” bem fresca, no Tónho, mesmo ao lado da Academia das Ciências. Este era o trajecto que normalmente fazia de há muitos anos aquela parte. E familiarizado que estava com os cenários e as coisas e pessoas, com quem sistematicamente se cruzava, como bom espécime “portuga” não tardou a que trocasse com umas quantas pessoas os habituais e educados: bons dias, ou boas tardes, conforme a hora e o local, como diria o Artur Agostinho. Nesse dia porém ocorreriam umas quantas coisas que lhe ficaram gravadas na memória. Primeiro, uma rapariga que ele associava à Bica, surge-lhe ao caminho no Cais do Sodré e em propósitos que inequivocamente o surpreenderam. A moça tinha um ar de quem já não era menina, mas de olhos muito vivos sorriso fácil, simpático e voz cristalina de fadista…. E assim lhe disse cristalinamente: Então filho queres ir comigo? A surpresa foi total aquela cara ali não estava certa e não batia certo o que dizia .Mas era ela, seguramente o era. - Por essa altura, e sem saber explicar muito bem porquê, desenvolveu o hábito, como outro qualquer, de responder a tudo e a nada com o sacramental: Tenha Paciência! -
E o tê-la visto assim travestida de prostituta, remeteu-o para as reacções automáticas e lá saiu à pergunta que ela lhe fizera, o incontornável: Tenha paciência!!! Ao que ela, algo desalentada, ripostou:
- Paciência tenho eu, que ando aqui desde manhã e ainda não fiz nenhum!!!
A remoer naquilo seguiu o seu caminho a digerir, como quem remói pedras, deixando o pensamento correr os quatro cantos dos mistérios que levam uma pessoa comum, à profissão mais antiga do mundo, dizem. Absorto e distante, sobe o elevador da Bica e em vez de ir para a rua do Século como sempre fazia, dá com ele no largo de S. Catarina, com o seu Adamastor com ar de mendigo zangado. Na mão esquerda reconhece o peso e o volume do livro que andava a devorar: O ano da morte de Ricardo Reis. Cujo Personagem morava ali numa das travessas adjacentes ao largo. Ali ficou olhos perdidos no Tejo a estoirar razões e martirizar a mona com as sensações que o livro lhe trouxera e as que experimentava presencialmente. Entre outros que ali estavam a curtir uma tarde de Sol, procurou um que se parecesse com a ideia que fazia de Ricardo Reis. Mistura não ponderada dele próprio e o de quem era heterónimo: Fernando Pessoa, com provável mistura de próprio autor do livro: o José Saramago - Isto porque estou em crer que todos os autores literários emprestam sempre um pouco de si próprios ás suas personagens. É um subtil processo de desnudamento intelectual que atesta a sua honestidade criativa….. Isto tudo, aliás, este tão pouco do tudo que abarcava, realizou ele ali debruçado do varandim do largo de S. Catarina.
Bom foi-se dali antes que não lhe sobrasse tempo de beber a refrescante cervejola no tónho…
Um prazer várias vezes renovado… Renovado porque não era apenas a cerveja que era outra, era sempre diferente e sempre novo. A paulinha com os seus olhos redondos e tristes, sempre tristes, pousou a garrafa e o copo na sua mesa, E o Nuno, o filho do Tónho sentado num banquinho à porta da tasca/ mercearia de bairro, dizia para a freguesia que se chegava de mais às caixas:
- Não se mexe na fruta!!! Dizia com veemência…
Poi é…. Tenha paciência!!!!!
António Capucha
Vila Franca de Xira, Setembro de 2010
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