Traineiras |
Rolou o cigarro entre os lábios finos e secos, acendeu-o e puxou uma ávida fumaça. Pegou-o entre os dedos indicador e médio da mão esquerda, ao passo que expelia o fumo retido nos pulmões, em rolos como se de nuvens se tratasse.
Com a outra mão pega no cálice de bagaço, e leva-o à boca. Com um movimento rápido inclina a cabeça para trás e despeja-o, insuflando as bochechas magras do seu rosto tisnado e curtido pelo Sol e a maresia.
Engole a mistela por entre um ah-ah-ah, e um estalar de língua.
Pousa o cálice no balcão com um gesto bem medido com um rigor de experiência feito, enquanto a sua voz de saxo-tenor, roufenha sem ser desagradável, diz: Óh “Tónho”, pinga aí mais um.
Uma portada larga com vidraças em vidro martelado de várias cores e aberta de par em par, dava aquele pequeno estabelecimento sobranceiro à Marginal Norte, o ar de um bar de sala de estar tipo classe média.
Manuel, o “Manél Bitoque”, dá as costas ao balcão e fica-se a olhar.
Os olhos – quase duas fendas no rosto – postos longe, sabe-se lá onde!
Na aparência fita o Mar, a Papôa, ou as gaivotas ali à frente entre a estrada e a falésia….
Puro engano…. Como que por magia, que não por efeito colateral do bagaço, num golpe de asa, voa para o meio da azáfama da Ribeira doutros tempos, na descarga da sardinha e a sua estranha polifonia e colorido. As “motoretas” de carga, de som agreste no seu toque-toque diesel, a prata das sardinhas casando com a vozearia dos homens e mulheres e estes com os apitos graves - solenes – das traineiras gritando ordens, vaidosas, nos seus vestidos de chita, num caleidoscópio de cores ondulantes, mais os seus motores poderosos… E, de entre elas a mais bonita, é a «Flor da Manhã» com o seus dois motores «Penta Volvo» a cantar com a sua voz de barítono profundo…. Era a que mais alto cantava. E era sempre a primeira a chegar aos pesqueiros. “Manél Bitoque” destrinçava o som da sua garbosa traineira de entre toda a frota de pesca de Peniche e não só. O seu ronco, era música para os seus ouvidos um tudo nada duros, ainda assim, ouvia/sentia distintamente a voz daquela sereia mecânica, que o maquinista trazia sempre num brinquinho, o orgulho da Companha.
Ora o “tónho”, o Sr. António para as Finanças, homem avisado, proprietário do «Porta Larga», sabendo onde ele já ia, grita-lhe por entre um sorriso a bailar-lhe nos olhos papudos:
Ah “bitoque”“atão”… o bagacinho é p’ra secar?
O “Manél”a custo, como quem desliga a televisão a meio dum jogo da bola, lá se virou e repete os gestos de “empinar” bagaços. Gestos dos quais não é autor exclusivo, pois trata-se de uma criação colectiva dos consumidores de aguardente, mas é seguramente um bom interprete dessas manobras.
E lá volta a plantar-se à porta, posto nas suas “tamanquinhas” à proa da “flor da Manhâ”, o olhar perdido no horizonte muito, muito p’ra lá da Berlenga…. O vento a assobiar nos cabos, o ssssshhhhssssshhh do casco a deslizar na água. Lágrimas???... Não!!!! É o vento!!!!
Num lampejo, a linha do horizonte regride e fica-se pelo que, fisicamente é a que se avista do «Porta Larga»: o Mar, a Papôa e lá longe o recorte, esbatido pela neblina, da costa até quase à Nazaré. Lembrou-se então que a mulher lhe tinha pedido para trazer um “pexinho” p’rá caldeirada.
Puxa de outro cigarrito, sai para a rua e diz daí:
Oh “Tónho” aponta aí!!!!!
O taberneiro soergue a boina e coça a calva. Passa um pano húmido sobre o balcão de pedra, e num rebolar de pança, vai à gaveta de baixo, ripa de um caderneco seboso e cheio de uma escrita indecifrável, de números e caracteres misteriosos e antes que esqueça, rabisca na coluna com o nome do bom do “Manél”, duas «BP». “Bombas de pelintrões”
(Testemunha que sou daquilo que relato, esclareço que para saber o que significava «BP», queimei as pestanas em pesquisas extenuantes…. Mentira…. Tive foi que arriscar uma “over-dose” da dita poção, para ganhar balanço e pretexto para o perguntar ao “Tónho”. Perdão…. Ao Senhor António, que eu tenho mais jeitos de fiscal das Finanças, que de freguês da tasca.)
Os passos do “Manél bitoque” levam-no às cegas e de cor pelos mesmos caminhos que já trilhara com outras ganas e noutros tempos, quando ia na “ginga” (bicicleta) da Vila Maria até à Ribeira onde embarcava mais a Companha.
Gente fina, trabalhadora e amiga.
Mas o Mar dá…. O Mar tira. E em nome do Mar, se tira também….
Não só vidas… Que essas, chorou-as quanto baste… - ele próprio fintou a morte um bom par de vezes. Mas não houve fuga possível desta morte lenta de tantos e tantos “Manéis” e “Jaquins”.
Já lá vão muitos anos mas está ainda fresco na sua cabeça…
Em nome do Mar e pelo Mar, dizem…Não sei quê a sustentabilidade…. quotas do “pêxe”, peço desculpa….. Do pescado… à espanhola!!!!! É mais fino!!!
Não sei mais o quê…. Subsídios para abate de embarcações….
Os marítimos nunca perceberam o porquê destas medidas. Eles sempre respeitaram o Mar, porque era, e é, a sua vida.
E abater barcos?!?!?!…. Aceitavam melhor que lhes arrancassem um braço.
É melhor para todos… Diziam uns senhores bem-postos, de ar sisudo e de bem com Deus.
E o «Flor da Manhã», foi para lenha e a Companha foi para o desemprego.
Claro…. É melhor para todos….
Não lhe ficou mais raiva do que devia. Que a raiva é coisa ruim… Consome um homem por dentro. Torna-o mau. E nesta Companha que todos os dias larga dali da ombreira do «Porta Larga», não há lugar para homens maus. Há, mas para companheiros…..
Vão com a maré, à proa da “flor da Manhã”, felizes, visivelmente felizes, como crianças de faces afogueadas… Voltam, ou não…. Pouco lhes importa.
Óh “Manél”…. “Manél Bitoque”…. Grito-lhe daqui, do lado do real. Não te esqueças do “pêxe” p’rá mulher fazer a “caldêrada”.
Não sei se me ouviu…. Ele já está um pouco duro de ouvido!!!!
António Capucha
Vila Franca de Xira Junho de 2009
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