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quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Treze horas e dois minutos

Sala de aula
Ele saía de casa todas as manhãs para o emprego e era de uma regularidade tal, que dava para acertar o relógio pela sua passagem…. Aliás os vizinhos dividiam a manhã entre o professor já ter passado ou ainda não.
Pendularmente entrava na sala d’aula, dois minutos antes da hora de entrada. Com os mesmos gestos de sempre pousava a mala na secretária, dirigia-se ao ultimo estore da sala e subia-o, repetia os gestos na janela do meio e na outra que ficava mais perto do estrado e do quadro na frente do qual se sentava, atrás da secretária. Tirava o chapéu e o cachecol de lã que pousava sobre o tampo da secretária e volvia o olhar para a entrada da porta no exacto momento em que a campaínha soava a dar a entrada. 
A “catraiada” entrava ordeiramente e ficava de pé ao lado da carteira até  estarem todos e então diziam em coro: Bom dia senhor Professor. Ao que o professor olhando por cima dos óculos respondia: Bom dia meninos…..  
Abram os vossos livros de leitura na página vinte e cinco!
Óh Ernesto…. Lê o primeiro parágrafo. O “arnésto”, para os amigos, lê so-le-te-ran-do, e tropeçando amiúde nas palavras difíceis (lembrando aquela cena do “Aniki bó-bó” em que um rapazola (o menino Eduardo) lia a mando do professor:
- < O joão “ Parvu”….. Como? Interpela o prof.  O João “parvu” repete o moço….
E corta o professor: “parvu” és tu.  Óh menino Pompeu, mostre lá como se lê….>
O Menino Ernesto não estudou a lição! A voz do professor Afonso, condizia com a sua figura: Seco, magro mesmo, enfiado dentro de um fato invariavelmente negro, camisa de colarinho engomado e laço.  O chapéu também preto atarraxado na cabeça, a tal ponto que lhe deixava nos cabelos, - baços, escorridos e penteados para trás - vincos.
Celibatário militante, muitíssimo cumprimenteiro, gentil até à “melosísse”  escorrente a cada curvatura vertebral, como diria Camilo… Atrelado à mão esquerda, uma pasta de cabedal, já se vê, preto…. Onde levava os projectos de aula da classe, os livros e tabuadas e, num compartimento apropriado um papo-seco com manteiga comprada ali na “Palmeira” que lhe ficava em caminho, e que mastigava sincupadamente de permeio com um copo de água,  durante o intervalo. Sentado no seu trono em cima do estrado de onde dominava toda a sala de aula. Testemunhas mudas, por cima do quadro um crucifixo em madeira com o Cristo cromado e os retratos de dimensões consideráveis de dois senhores de ar sisudo. Um por cima e do lado esquerdo do quadro com um senhor fardado, muito importante e do outro lado, direito do quadro, esquerdo nosso, e à mesma altura um outro senhor vestido como o professor e com ar de enfado tolerante….
Uma tremenda alegria!!!! Diria, sem medo de me enganar….
O chilreio das crianças cessava antes da porta de entrada. Aliás, as escada já eram subidas em sentido e aos pares, assim como as descidas…..
A tabuada dos oito cantada a preceito e uma leitura em grupo, esta mais polifónica, completaram a aula.  Aos dois minutos para as treze horas, os dois minutos de sempre e sempre guardados em silêncio, eram o preâmbulo da estridência da campainha accionada pelo Sr. Silva. O Professor Afonso, vigia a ordem de saída da “pardalada”, que só no pátio rompia em chilreios e devassa….. 
O professor passou a mão pela testa. Gesto demasiado exuberante para ele…. Hoje não se sentia muito bem…. O papo-seco caiu-lhe mal…. Arrotava sem destino… Bom…. A ver vamos dizia de si para si…. Pôs o cachecol ao pescoço atarraxou cônscio o chapéu, pegou na pasta e saiu.
Tropeçou nas escadas e caiu estatelando-se no patamar do meio e já não se levantou. Morreu inopinadamente pelas treze horas e dois minutos daquela Quarta-Feira parda e feia….Tinha partido o pescoço que, e ainda não o tinha dito, era alto e esguio....


                           António Capucha

           Vila Franca de Xira, Fevereiro de 2011

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