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sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Vasco, o amansador de cavalos


Naquela mesinha ao cantinho enquadrada por prateleiras de vinho e garrafões bordejando-as no chão, concentrado no prato de grão com mão-de-vaca, e cenouras às rodelas. Está um sujeito de fato azul de corte rudimentar, que me cumprimenta educadamente quando entrei e saudei os presentes. Perguntei só para meter conversa: a mão-de-vaca, está boa? Era evidente que estava. O que dispensava a pergunta. E disse o interpelado que sim senhor …. Estava muito boa…. Prosseguindo esta estratégia que queria dizer lacto senso: quer ser meu amigo, é?
Óh sr. António, disse, traga-me aí uma mão-de-vaca, um jarrinho de tinto…. Isto disse eu, quando ele já vinha a caminho com o prato fumegante. E diz ele para dentro: Óh Paula então trás lá o talher p’ró sr. Capucha…. A Paulinha com os seus olhos melancólicos, relanceando-os no seu característico maneio de cabeça, põe a mesa e recoloca o prato que o pai havia deixado na mesa ao lado. E dali se vai para outro freguês…
Ora isto dia após dia, mudando apenas o prato de substância. Mas nunca de forma muito radical…. Eram sempre coisas dietéticas, levezinhas digamos assim…. Feijoadas,  cozidos à portuguesa, Bacalhauzadas, normalmente à Segunda-Feira…. Esparguete com boi etc…etc….
Era uma delicia, que se batia em qualidade com a comida, as brincadeiras entre o sr. António - o dono - e o sr. Vasco, o tal do fato azul… Óh Tónho tens cabeça de carneiro? Tenho …. Mas “p’rámanhã”. Comes inteira ou queres que te parta os cornos? E trazia já na mão um pratinho com um queijo duríssimo como o sr. Vasco gostava…. Enquanto ele rilhava o queijo íamos afiando o conhecimento e confiança mútuo. Não tardava, estávamos a comer juntos e a partilharmos quês e porquês da nossa vida.
D’hoje p’rá manhã passou de sr. Vasco a Vasco e o sr. António para tónho, ou Tonecas….
O Tonho era um Beirão, que novo veio para a Capital e que se estabelecera ali ao lado da Academia das Ciências com uma mercearia. E como tinha espaço e a mulher cozinhava a preceito, dividiu uma sala e fez uma cozinha e na outra pôs um balcão frigorífico e a máquina da café e o expositor de bolos. Estabelecimento que há-de ter um nome, sim senhor, mas se alguém o conhecia era por acidente. Era o Tónho e mais nada. Restaurante, pastelaria, frutaria e mercearias finas….
Os almoços com o Vasco passaram a ser um tertúlia de conhecimento, de tudo e mais que houvesse. Ele tinha como profissão motorista, melhor: “chauffeur” do Visconde que morava ao lado da Emissora na rua de S. Marçal. Já havia sido condutor da “charrette” no tempo dela, mas tinha começado nas campinas da Golegã, como amansador de bestas-Capucha…. Percebi o remoque, claro, e não me dei por achado e retorqui: Ãh…? Bestas-Vasco?... Então não se diz domador de cavalos? Não senhor… Os bichos nunca se domam… Aprendem é a ser menos bravios…. Mais mansos…. Amansador de cavalos é que é…. Eu mais uns quantos com jeito para aquilo, olhe que é preciso gostar dos bichos ãh…. Malhei tantas vezes com os ossos no chão, áh rapazes….. Primeiro há que andar com eles à roda com uma corda comprida…. Depois vai-se encurtando a corda até estar mesmo juntinho dele. Fazê-los aceitar o cabeção depois o freio…. Mas “óspois” disso tudo têm que ser montados e aí é que é o bonito….Não havia dia nenhum que não fosse um para o Hospital com uma mazela qualquer. Por via disso agora tenho que ser operado à coluna, foram tantos malhos que eu nem sei…. Mas tenho saudades, p’ra já porque era novo! E depois, porque aquilo é que era vida, ao ar livre…. Beber água do cântaro, comer torricado, acender a fogueira com bosta de animais seca…. Namorar as moças do rancho….  
Um belo dia, tive que voltar para o Quelhas e dali para as Amoreiras e perdi-lhe o Norte.  Ao “toneca” ainda o vi um par de vezes, mas onde os vejo amiúde, é a revolver as memórias. Que é o melhor sitio de todos, onde todos incluindo eu, temos menos quinze ou vinte anos. E já tentei explicar isso a não sei quem, e não me fiz entender cabalmente, mas prefiro as minhas memórias à confrontação com a "factoalidade" com a qual raramente me identifico. Muito ao invés, não raro, decepciona-me!!!!


                             António Capucha

            Vila franca de Xira, Fevereiro de 2011

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