Endereço do blogue........peroracao.blogspot.com

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

As espantosas aventuras do insuspeito João “Tabefe”

Carissima/os Amiga/os:
- Como por força hão-de ter reparado, uma coisa que me preocupa é a veracidade Histórica de "estórias" que circulam por aí há Séculos sem que alguém se tenha dado ao trabalho de investigar da sua verosimilhança. Ombros largos e o apego à verdade determinaram esta minha demanda em seu nome. Desta feita trago-vos ao conhecimento a verdadeira "estória" da Capuchinho Vermelha.
A verdade é sempre mais fantástica que a ficção!
António Capucha

As espantosas aventuras do insuspeito João “Tabefe”

Acordou com uma dor pesada e grave no ombro esquerdo e cheirou-lhe a terra húmida e a erva fresca pisada.
Estranho, pensou!
Abriu os olhos e em primeiro plano via os pés de erva que lhe terão despertado o olfacto. Percebeu então que estava caído no chão. Pé ante pé foi retomando o domínio dos factos. Ora ele vinha a cavalo…. Se estava no chão, é porque tinha caído da montada. ELE…. O JOÂO “TABEFE”, cair do cavalo? Pode lá ser….
Tentou reerguer-se de um salto. Mas aquele ombro reclamou a imobilidade de que necessitava, ferrando-lhe uma dor de mil facadas. Um ronco selvagem acompanhou a tentativa de se levantar…. Isto está mau, pensou. Virou-se rodando lentamente o corpo para o outro lado e apoiado na outra mão, lentamente foi vencendo a lei da gravidade e lá se pôs sobre ambos os pés. Não sem que lhe rodasse todo o cenário do campo à sua volta…. HÉ lá… Dizia. Não sei se foi do trambolhão ou se ainda é do vinho. Lembrou-se de ter estado a beberricar na casa de pasto, onde depois do almoço ficou mais um pouco a regar a feijoada que “embrulhara”, com aquele vinho de estalo que o “sacrista” do taberneiro tinha.
Por isso caí do “alimal”. Sorte marreca!
Pelo sim pelo não, já não subiu para a garupa do equídeo, tomou o “ruço” pelas rédeas e lá foi aos esses e erres pelo caminho que por sua vez, serpenteava por entre montes e vales, um bom par de quilómetros até chegar a casa.
Ah “home” dum raio… Diz a mulher ao vê-lo. Olha p’ra isto…. Estás entupido de vinho!!! Sua besta!!!!…..
Não me trates mal “Mélinha”, gemeu ele. Se soubesses?!?! Por mor de chegar cedo a casa, vim pelo atalho das Cardosas e ao saltar uma sebe o “ruço”empinou-se e espetou comigo no chão… Ai…. Ai…. Estou aqui que não posso!
A”Mélinha” que não é das últimas, esganiça ainda mais a voz e diz: Empinou, empinou…. A empinar esteve você… Sua besta! A empinar copos, lá c’as galdérias na taberna… Seu “mastronço”…. “Jabardolas”….. Venha mas é comer.
Ai…. Ai… Nem fome tenho… Dá-me só um caldinho.
O caldinho fumegante e perfumado apareceu na frente do cabisbaixo “tabefe” que o sorvia da colher com lenta parcimónia. Enquanto a “Mélinha” sentada na sua frente cortava bocados de broa os esfregava com toucinho e alho, e engolia, por entre o responso que se afadigava em continuar…. Não tem vergonha… O que vale é que as meninas já dormem. Já se viu? “Havera” de ser bonito, verem o pai nestes preparos…
Vá, ande lá p’rá cama qu’é para lhe por umas papas nesse ombro. Daí a pouco, nos habituais trajos, de camisa de noite e barrete, lá foi ordeiramente para a enxerga e a breve trecho, já parecia uma nora empenada e ferrugenta a tirar água.
Agora que ele dorme, é talvez altura de dizer o que tem de especial esta personagem: O João “Tabefe” – Tabefe é alcunha – não tem de facto grande coisa que o distinga do comum dos homens do seu tempo, que é o tempo em que ainda se andava a cavalo… Era um caçador, hábil e eficaz, que conhecia como ninguém aquelas terras do Sr. Regedor Afonso de quem era couteiro. Tinha um daqueles conhecimentos de tal forma detalhado, que não havia toca de coelho, poiso de faisão ou trilho de gamos ou javali que lhe escapasse. E os caminhos… Esses percorria-os d’olhos fechados, ou com um “grãozito na asa” como naquele dia.
Mas também não é isso que lhe confere o destaque indispensável, para ser o protagonista desta “estória”. Aliás, bons caçadores, há-os aos montes por todo o lado.
Gente de instinto aguçado e pontaria assim do tipo: Onde mete o olho, mete o tiro. Ao contrário da maioria dos senhores das terras que, salvo raras e honrosas excepções, eram uns néscios nessa, como em muitas outras matérias. Claro que quando o senhor ia à caça levava o couteiro, que para além de lhe meter os bichos pelos olhos adentro, disparava o canhangulo ao mesmo tempo que o amo, sendo que o tiro que abatia a peça, era o do patrão. Claro!!! Belo tiro patrão!....
Esta subserviência era contrabalançada pelos privilégios que o couteiro tinha. Para além de uma casa para ele e a família, podia também caçar qualquer coisita para si. E isso não era coisa de somenos, naqueles tempos de “fomeca” bravia….
Bom…. Tão pouco é isto que justifica que venha falando tanto nele.
De uma maneira ou de outra, todos os couteiros se assemelhavam e equivaliam…
Então o que é que o torna este distinto dos outros?
E agora vou revelar-vos um segredo que me vem queimando a existência desde que um velhote, um peregrino – Quiçá um Druida, um Santo, ou o próprio Gandalf …. Sei lá – me revelou quando eu calcorreava uma calçada romana para os lados de Chaves, que faz parte dos caminhos de Santiago. Disse-me então o bom do peregrino:
- Meu filho…. (eles falam assim…. São com’ós médicos) Vou contar-te uma “estória” verdadeira, mas é um segredo terrível que carrego há muito tempo e já não tenho forças para continuar a arcar com ele. Com a respiração pesada continuou:
- O couteiro da herdade das Cardosas… Não é só o couteiro da Herdade das Cardosas. E disse arqueando as sobrancelhas e semi-cerrando um dos olhos, adensando o mistério após uma breve pausa:
- Lembras-te da História da Capuchinho Vermelho?
Disse que sim, que me lembrava… Que era uma velha História que se contava em família e que se calhar, nela inspirada, a minha família passou a chamar-se Capucha até aos dias de hoje.
Acto contínuo o ancião, enchameou-se… Mais que isso meu rapaz…. Mais que isso!!! Uma aura orlava-lhe a cabeça e trovejou em tom grave:
A História que tu e todos os meninos e meninas ouviram contar, é uma treta!
- Tu és descendente da Capuchinho Vermelho e não fora este couteiro, que vilmente a História trata como um anónimo figurante, e o teu avoengo, teria sido o fruto resultante dos impudicos amores entre a Capuchinho e o lobo mau.
Bom, isso pelo menos justificaria o pêlo na venta dos Capuchas, pensei de mim para mim.
E contou-me tudo, não omitindo mesmo os pormenores mais sórdidos…
Mais novo, mas façanhudo afamado, o então apenas caçador, João “Tabefe”, andava a seguir a Capuchinho pela floresta, porque ouviu dizer que ela dava umas baldas. Ao vê-la desaparecer por detrás da porta da casa da avozinha e porque ouviu enorme reboliço lá dentro, entra de supetão pela casa e dispara o arcabuz sobre o cabrão do lobo mau, que se preparava para se lambuzar com a Capuchinho. E, aí a História é fidedigna, pois ele disse efectivamente o que ela reza:
Este já está “liqüidado”… O tiro foi bem na testa…. Não comerá mais crianças nos caminhos da floresta.
Mas o lobo mau, já se tinha batido com a debochada avozinha, que ainda tinha os pés de fora da boca do lobo, enquanto de dentro da fera, no seu buxo, ressoava a avozinha, que gritava histericamente : A mim … A mim, que fui da ideia!!! Que se lixe a velha, terá pensado!!!! Ela que se desentale da dentuça do canídeo selvagem.
Prossegue o personagem de mistério:
- Resulta claro e evidente, que o teu avoengo não é outro senão o “Tabefe”, que colheu já maduro, como um prémio, o fruto da moçoila que entretanto lhe caíra nos braços desfalecida por não aguentar tão fortes emoções. Ora…. Já agora “aproveto”!!!! Disse o “Tabefe”. E Foi o último som que se ouviu antes do resfolegar intenso. Os gemidos perturbadores da virgindade dela a ir-se. E os roncos desbragados do vermelhusco João a vi….. Bem….. O oposto de ir-se!!!!!
Apesar da gravidade das revelações e do seu duro impacto, ficamos à conversa que corria a meias com um farnel que gentilmente me ofereceu e que partilhamos à sombra de um castanheiro. Um opulento mutélo, broa e uma garrafita de tintol, que nos iam correndo pelos gorgomilos, como o Tâmega corria pachorrento lá mais abaixo no vale.
O velhote, mais aliviado depois de me transmitir este terrível segredo, já desfeito da aura e mais descontraído, em tom mais sereno, por entre a mastigação das vitualhas, lá me foi dizendo que não ficasse acabrunhado por ser descendente duma rapariga de supostas baldas, (vulgo mãe solteira) ainda que vítima de estupro, porque isso era o pão-nosso-de-cada-dia naqueles tempos. Nem sequer era tido como pecado. Os costumes e a moral eram outros. O fundamental naqueles tempos, não era cumprir os preceitos da actual moral balofa e hipócrita. Era manterem-se vivos…. Matar a malvada fome e escapar às pestes.
Lembras-te, dizia, do poema daquele frade do Século XVIII acerca das mulheres, cujas, segundo ele: tinhas três diversas condutas: As velhas são feiticeiras/ As mulheres alcoviteiras/ E as raparigas… Putas. (foi ele que disse)
As coisas eram mais ou menos assim nesse tempos idos, a gentinha do povo vivia em promiscuidade e na quase total ausência de qualquer organização social… Os exemplos vindos de cima, do clero e da nobreza, também não eram famosos como é sabido. As pessoa da plebe nem casavam nem nada que se parecesse. Os casais formavam-se e as famílias, constituíam-se por simbiose e na exacta medida das suas posses de alimentar a prole.
Tudo o mais é preconceito, Tal qual outros do mesmo jeito.
Havia lá noção de Pátria, nacionalidade, fronteiras e assim…. Eram conceitos inexistentes…. Os pobres coitados apenas sabiam o que os olhos deixavam ver no raio de acção que suas bestas de carga aguentavam. E muito embora já existissem profissões não havia o conceito de emprego, logo o desemprego também não ocupava espaço nenhum nas preocupações de seja quem for….
PRECONCEITO…. E DESONESTIDADE…. São os valores mais visíveis, que estão por detrás de quem apregoa a família como sendo fruto de culturas ancestrais. O que havia e sempre houve, foi o incontornável amor das mães pelos filhos, tão poderoso quanto o sentido de vadiagem errática, dos machos sexualmente activos…. Só que o ser humano é um ser afectivo e isso sim, foi o cimento que solidificou o moderno conceito de família.
Tal como o amor Pátrio, prosseguiu, Julgas que era o sentido de missão patriótica que levava os homens a percorrer os sete mares e os cinco cantos da terra?
Se julgas enganas-te. Eu fazia que sim com a cabeça…
O que as autoridades faziam, era mandar distribuir “vinhaça” à borla pelas esquinas e tascas do Reino. Isto na noite que antecedia a largada das Caravelas. Depois escolhiam os que tinham melhor aspecto, mais saudável, e quando estes acordavam da bebedeira, Já iam muito ao largo, mar adentro. Claro que o seu sentido de improviso e adaptação à realidade, depressa os transformou de raptados em interpretes da Saga Heróica Lusitana.
E para a guerra faziam mais ou menos o mesmo…. Davam os “morfes” e ainda por cima davam-lhe uns patacos (o soldo), e deixavam-nos reunir alguns despojos dos inimigos vencidos… Sendo certo que umas horas antes da batalha havia dose reforçada de sumo de uva fermentado… Esta estratégia conseguiu produzir umas quantas vitórias para as nossas hostes, de permeio com a invocação dos Santos da especialidade, aos quais a boa da zurrapa, disputava os méritos….
Por essa altura ia-se acabando o mutélo e o vinho. O bom do velho embrulhou num guardanapo o resto de broa, ergueu-se e disse-me suavemente: É melhor meter pés ao caminho que isto começa a ser muita areia p’rá tua “camineta”… Ou não é?
Com efeito, respondi!…. (Hoje no entanto, depois de muita e muita água ter passado debaixo das pontes do Tâmega, lá vou realizando uma parte, apenas um tudo nada, do tudo que ali me foi revelado.)
O ancião fitou-me com os seus olhos cansados, e, não foram precisas palavras de despedida. Simplesmente virou-se e foi-se afastando.
Quando já ia na curva do caminho, recortando-se contra o Céu que alardeava os tons de fim de tarde, gritei-lhe:
QUEM ÉS TU ROMEIRO?
NINGÉM…. Respondeu-me num aceno….

António Capucha

Vila Franca de Xira 30 de Abril de 2010

Sem comentários: