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terça-feira, 17 de agosto de 2010

O nandinho de Campolide

Campolide
Campolide


O Nandinho era um rapaz da cidade, da mesma maneira que outros são do campo. Nada de especial nesse particular. Mas particularizando, era mais precisamente da Calçada de Campolide em Lisboa, circunstância que terá sido decisiva para, há uns anos ter deixado de fumar. (isso e a sua profissão que puxava um tanto pelo “caparro”, como adiante se verá)
Para quem não conhece, esclareço, que a referida calçada, que por acaso é asfaltada, para um dos lados requer algum pulmão para a subir e no sentido inverso, umas boas “travadeiras” para uma criatura não se “espalhar”.
Quando não havia televisão, sim que houve um tempo em que não havia televisão. Coisa difícil de imaginar mas tão verdade como estarmos aqui. Como ia dizendo, naquele tempo, à falta de melhor o nosso homem, então um rapazola, ficava horas à janela do seu primeiro andar a divertir-se com as “patinadelas” dos transeuntes, ficando o divertimento ao rubro quando alguém se estendia ao comprido. E então se fosse uma varina…. Com o seu cento de saias e saiotes pela cabeça e as pernas p’lo ar…. Isto, abrilhantado por um chorrilho de dizeres pícaros capazes de fazer corar um carroceiro. Então, é que era rir a bom rir…. Claro que o “Nandinho também não saía disto incólume…. A varina não se ficava pelo trambolhão e a subsequente risota dele. Na sua voz de pregão dizia: Olha lá ó puto dum cabrão, ‘Tás-te a rir de quê? Nunca “vistes” o buraco por onde “saístes”???? Filho da puta a rir-se!!!!
À cautela o miúdo recolhe-se e fecha a janela, mas fica de atalaia por detrás dos cortinados de renda que a sua mãe fizera para “queimar” os serões estéreis duma pobre viúva.
Quando saía de casa o moço, umas vezes p’ra baixo outras vezes p’ra cima, em pouco tempo fez a escola primária, o liceu e a faculdade do autêntico “skate” que era caminhar na calçada com as suas botas cardadas, para poupar as solas. Era um verdadeiro “expert”nessa coisa das derrapagens controladas. A outra escola é que…. Bem a outra escola ia…. Quem não ía muitas vezes, vezes de mais, era o Nandinho, para quem havia um sem número de coisas bem melhores para fazer, do que aprender aquela pimenta dos nomes das terras, dos rios e assim! E os Reis…. Fh… Fh….Fhfhfh… Nem vo-los digo…. Então não era muito melhor e mais proveitoso ir ali à Artilharia I, rondar o “putedo”? Ou ir ali para o fundo da calçada, e um pouco antes de Sete Rios, andar à pedrada com os gajos das barracas? Também tinha o seu encanto ir ali p’rá Rotunda morder as gajas que passavam, todas pintadas, muito vistosas nas suas saias travadas. E o bom do nosso Nandinho ficava por vezes circunspecto a imaginar se por baixo daquelas roupas bonitas, elas eram iguais às varinas lá da calçada… Mas isso era fugaz, depressa voltava à actividade que primeiro ali os trouxera: Morder umas gajas e dizer umas bacoradas….
À mãe do Nandinho, a D. Zulmira, toda esta árdua actividade paralela, passava despercebida. É preciso dizer que a pobre senhora, trabalhava de manhã à noite na pastelaria do “jeitoso” “A Florbela de Campolide”, ali a dois passos de casa, na rua de Campolide. Como já foi dito a senhora era viúva e com o seu magro salário tinha que sustentar-se e ao filho menor, pagar a renda de casa, água e luz ao implacável do “invejoso” que também era o dono da mercearia do bairro. Para ele o negócio ia de vento em popa e na exacta medida em que a desgraça se abatia sobre a maioria dos moradores. Tinha além das casas e como já se disse, a mercearia, a ourivesaria e à sombra desta, uma loja de penhores. E a coisa funcionava como um relógio…. Os habitantes deste bairro fadista, quando não, num impulsivo porque sim, compravam-lhe ouro aos magotes para botar figura no baile dos Bombeiros. Ouro esse que depois retornava ao judeu por conta do “cão” lá na mercearia, na “justa” proporção de um para dez, ou então, ao balcão do usurário que o reavia a troco da cautela e de meia dúzia de patacos.
…..Ahhhhh… Um anel de ametistas!!! Também…. Já fez o seu trabalho…. A Micas cerzideira até se roeu toda de inveja…. Ora, vão-se os anéis…. Diziam!!!
Outrora Feliz a Zulmira quando ainda tinha o seu Chico Mendes (que não era toureiro) e um bebé de caracóis louros, o embrião do nosso Nandinho, era a rainha dum lar, singelo mas onde o indispensável não faltava. Pese embora o Chico, fadista “pimpão”, de sapatos de verniz bicudos de “matar baratas ao canto da casa”, e cachené harmoniosamente amarrado ao pescoço, para proteger as cordas vocais, ter um sem número de despesas imponderáveis e inadiáveis que derivavam da sua arte de fadista vadio. Tinha que manter o sapatinho a luzir mil Sois, mesmo em dias escuros e o “cenário” bem escovado e vincado a preceito, encimado pelo cabelo cortado à faca e colado ao crânio com brilhantina e o bigodinho à esquadria, como o Errol Flynn. Categoria!!!
A Zulmira achava perigoso o resultado da soma da sua (dele) figura escultural, com o cenário irrepreensível – mérito dela, fada do lar! – a que se juntava o talento de cantor. As gajas até se atiravam para o chão quando o viam, e ele, claro, como Homem que era não se fazia rogado….
Ele era dela e ao toque de alarme, não se lhe dava fazer uma “escabechada”, fosse onde, e com quem fosse…. Era o seu homem e mai’ nada….
Mas um dia, sorte marreca, ele acordou mal disposto, ainda pediu os sais-de-fruto, mas apesar disso, a coisa empinou. Foi de “charola” para o Hospital de S. José. E foi-lhe diagnosticado um AVC agudo (vulgo “travadinha”). E “ficou a meter canela nos pastéis”. O que na linguagem do bairro queria dizer, perda de controle de um dos lados. Logo o braço correspondente ficava trémulo e abandonado como quem põe canela nos pastéis de nata. Dá para entender?
A Zulmira montou guarda à porta do hospital com o Nandinho ao colo, enquanto “ladaínhava” promessas às “Nossas Senhoras” todas, conhecidas e por inventar, por mor do seu homem….
O Chico saiu no dia seguinte de padiola e ela levou-o para casa e cobriu-o de ternuras e tratos de esposa extremosa. Mas ele coitado, que perdera o domínio da fala, balbuciava apenas, sem poder cantar, chorava em silêncio para ela não dar conta, e definhava, definhava a olhos vistos, até que se apagou como uma vela. Passarinho livre não canta em gaiola!!!!
Os anos correram como sempre correm, até ao momento das rondas extra curriculares do Nandinho que estávamos a descrever. E a verdade é que é menos exacta a memória destas coisas que a imaginação daqueles mariolas para derivarem da escola. E tantas foram as derivas que um belo dia a Zulmira estava a despejar o balde das limpezas na sarjeta, e vê passar o seu rapaz mais a “pinantagem”numa das suas deambulações. Ah Nando, grita-lhe de longe. O que não teve outro efeito que fosse vê-los desaparecer cada um para seu lado como coelhos. Deixa estar que logo temos muito que conversar….
Esta reflexão da Zulmira foi também o raciocínio de seu filho que desde logo decidiu que nessa noite não havia de estar em casa e as outras … Logo se verá…. Com o tempo o coração de mãe em cuidados amolece, e será de braços abertos e as lágrimas a assomar aos olhos, agradecendo a todos os santinhos por o ter de novo em casa. Deduziu…
Boas contas fez o mariola…. De tal maneira boas, que aquela escapadela de uma semana a dormir ao Deus dará, foi a fronteira para a sua independência. Eis como aos dez anos o Nandinho se fez filho da noite, com todo o cortejo de actividades lúdicas inerentes.
A mãe, sofria em silêncio no frio dos seus lençóis de viúva, a abstinência de mulher ainda nova pujante e saudável, que mal cosia com o martírio da fuga do filho para o calor da noite…. E que quentes eram as noites ali em Campolide. Falava-se de uma onda de assaltos. O Sr. David foi duas vezes assaltado. Roubaram-lhe uma telefonia e uns relógios e mais umas cangalhadas que para mais não houve tempo… O “sacrista” do velho dormia na loja com um olho aberto e outro fechado e acordava ao mais leve barulho, com’á gata da Maria Mendes: A dormir e a caçar ratos… O pessoal lá do bairro à boca pequena dizia: Ora…. Ladrão que rouba a ladrão……. O Sr. David era o prestamista!!!!
A Zulmira acordava com ele a entrar já de dia, e ouvia-o na cozinha a amanhar qualquer coisa para comer. Antes de sair de casa ia de mansinho ao quarto dele vê-lo dormir e aconchegar-lhe a manta, e um estranho sorriso de ternura feito, não impedia que por vezes, uma grossa e amarga lágrima transpusesse as pálpebras pestanudas, que lhe emolduravam uns expressivos e doces olhos castanhos. E lá ia a Zulmira que ao jeito de outra, a “Luisa”do António Gedeão, subia, subia, subia a calçada…. Anda Zulmira… Zulmira sobe…. Sobe que sobe……..
Ela sabia, embora não gostasse de pensar no assunto, como é que aquilo, forçosamente, havia de acabar. Mas não lhe dizia nada com medo que ele fosse embora de vez.
Até que um dia, foram ter com ela à pastelaria para que fosse à esquadra da “bófia”. Deu-se-lhe um aperto no coração e da garganta soltou-se um ronco que mais parecia de bicho que de gente… E caiu redondinha no chão. Afastem-se, afastem-se deixem respirar a mulher. Dizia o “jeitoso”, aliás o Sr. Domingos, enquanto lhe molhava as fontes…. Voltou a si e lá foi para a esquadra. O Fernando Manuel de Sousa Mendes, Tinha sido preso em casa nessa manhã e como era menor ia rapidamente ao Tribunal da especialidade.
Por trás de uns óculos na ponta do nariz, o evidente enfado da expressão facial do juiz dizia da atenção que deu às razões aduzidas pelos senhores de vestes meio tolas e dos seus estúpidos capachinhos….. Tão estúpidas e sebosos como as razões que invocavam, cujas resultaram num alto e pára o baile por parte do enfadado Juiz…. Já entendi tudo muito bem. Fica condenado a quatro anos na Colónia Correccional de S. Bernardino. Está terminada a audiência….
E lá foi, o não tão bom como isso Nandinho, lá para as bandas de Peniche.
Como uma alma penada vagueava com outras almas penadas da sua igualha, tentando esquecer a vida que tinham cá fora, para não se “passarem” com as inevitáveis comparações entre a “boa vai ela” e a disciplina a que a casa nova os obrigava. AI….AI…. O cacau às seis da manhã na Ribeira….Isso é que era vida…. Era um roça-roça pelas nádegas generosas, das generosas clientes, as varinas, que riam das investidas deles… Goza pequenino… Goza…. Já “vistes” este “cága-tacos”…. É “piqueno” mas já gosta !!!!
Agora na clausura…. Bom isso ainda era o menos. O pior… Mesmo o pior… Eram aquelas conversas do Capelão à Sexta –Feira…… Não sei quê…. Fosteis meliantes e por via disso viesteis aqui parar. Com a graça de Deus haveis de sair daqui, curados dessa chaga aberta…….. e por aí fora. O sacana do padreca, era um homenzarrão que tinha umas “manápulas” que pareciam duas raquetes com que os agarrava pelos ombros e os atraía a si. Era muito “afectuoso”. Lambuzava-lhes a cara de beijos e ia por aí fora de “carícias” de respiração pesada e a cheirar a alho e vinho de Missa e a escorrer suor como um porco…. BÃÃÃ!!!! Que nojo….
Pelo sim pelo não, mostrou-lhe sempre má cara ou fazia-se doente com tosse e assim, e ele lá virava a sua predilecção para outro qualquer desgraçado. Bom aquilo era cada um por si!!!!
Fez a escola toda até à quarta com distinção, fez-se de bonzinho e um belo dia saiu…. Deram-lhe um bilhete para a “camineta”, um “fatinho de ver a Deus” e quinhentos pauzitos. E aos catorze anos, ei-lo relançado na vida….
A sua mãe que o ia ver quando podia, abriu os braços e as “torneiras dos olhos”, cingiu-o num abraço muito apertado, cobriu-o de beijos e, que bom, destes gostava ele…. Naquele instante sentiu-se no Céu. Quer dizer…. Se houvesse Céu, era de certeza aquilo que ele estava a sentir.
Os quinhentos paus deram para umas semanas de bolinhos e “galões” e de noite ficava a ler qualquer coisa que agarrasse. Um hábito que ganhou na casa de correcção, para matar o tempo, que insistia em correr pastoso e dolente.
A velhota nunca lhe disse nada mas ele percebeu que ela tinha algumas dificuldades de dinheiro. Então resolveu procurar um trabalho para ajudar lá em casa. Andou ali na calçada para baixo e para cima durante dois dias, até que o “Quim da Susana” lhe disse: É pá “porqu’é” não vens trabalhar comigo? O casaca disse que estava a precisar de mais um “acarta presuntos”…. Que ele já estava velho e a coisa puxava pelo cabedal …. É coisa para gajos mais novos.
E olha lá, o “guito” não é assim tanto, mas as “ gorjas” são boas, só tens que ser educado com a família do gajo que “esticou os manjericos” e vais ver. E depois Também te digo… Aqueles é já não fazem mal nenhum a ninguém.
O Nandinho, pensou… pensou, pesou tudo muito bem e resolveu ir falar com o Sr. Antero, o proprietário Funerária S. António, que é como se sabe o padroeiro do bairro.
A coisa foi um ápice…. Sim senhor meu rapaz… Lá corpo “amandas” tu!!!! Acertaram o vencimento, rasteirinho já se vê, uma palmada nas costas e a coisa estava feita. HÓ Nando! Passa ali pelo Chico alfaiate para te fazer um fato preto. E diz-lhe que eu depois falo com ele….
E lá foi o ex- meliante Nandinho, o menino de sua mãe feito homem aos quinze anos, para circunspecto “gato pingado”.
Durou isto até receber a carta para ir à inspecção Militar. Mais uma machadada no coração da pobre D. Zulmira…. É que ela bem ouvia na telefonia eles a falarem da guerra…. Não sei quê …. Para Angola, rapidamente e em força! Ela não realizava por completo o que aquilo significava, mas o seu coração já lhe dizia que não era flor que se cheirasse….
Por sorte o sortudo do Nandinho a conselho de um amigo, pediu que lhe fosse atribuída a situação de amparo de mãe, que lhe foi concedido e ficou na metrópole e em Lisboa.
Quando não estava de serviço, e como tinha as tardes livres, ainda dava uma mãozinha na Funerária e essa realidade fez com que tivesse capacidade de amealhar uns trocos.
Andava com uma na cabeça de fazer uma surpresa à mãe e obstinadamente juntou o “arame”necessário e um belo dia, apareceu em casa com um Caixotão de respeito…. Ai rapaz… O qu’é que trazes p’raí?
HHÃÃ…. Não é nada…. Vinha eu ali à beirinha do Tejo e isto vinha a boiar!!!!!
Destapa o caixote e tira o estranho aparelho!!!!
HÁÁÁ…. Uma televisão….. E isso toca?
Se toca, isto é uma torneira a deitar música!!!!
Mas on’dé qu’eu já ouvi isto???
Bom…. A partir daqui, acabou a “estória”, por que já toda a gente sabe como foi….
E porquê perguntarão?
Porque chegou a televisão, e toda a gente ficou a saber de tudo e em simultâneo.
Sorte marreca!!!!


António Capucha

Vila Franca de Xira Junho de 2010

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