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domingo, 14 de novembro de 2010

Constantino

Madragoa
O bairro da Madragoa em Lisboa, é uma das sete colinas que são o colo e regaço da Capital. (como diz o poeta) Bairro castiço, onde mora gente castiça e com aquele casario característico da cidade pós terramoto. A população original, segundo rezam as crónicas era constituída por marítimos. Desde as descobertas que eram uma grossa fatia dos tripulantes das caravelas. Saltaram do Tejo para o Mundo de onde voltaram almirantes da bolina…. Capitães de Mar e Guerra, pescadores eles e varinas elas. Hoje em dia essa composição social cedeu à erosão dos anos, e essas profissões deixaram de ter razão económica de existir.  Mas não foram para muito longe do seu apego nostálgico ao Mar. Aí por alturas do fim da segunda guerra Mundial fizeram-se operários do Alfeite e da "Parrisson" (Parry & Son)…. Metalúrgicos da construção e reparação naval. O que é verdade é que mantiveram sempre aquele balanço do mar nos seus hábitos funcionais do dia a dia. Tal como elas não perderam aquele andar rebolado de ancas como se levassem a canastra à cabeça em cima da rodilha e o pregão na ponta da língua, agora entre as quatro paredes de tabique pombalino, a contar o fado para empurrar os afazeres da casa. O fogareiro a carvão já está à porta com a pinha a arder, por mor de que o vento ateie as brasas onde vão assar os carapaus já salgadinhos…
Na tasca da esquina onde debicam dois galos çó-cós à solta, que lá vão gerindo as investidas dos gatos. Mas quando a coisa empina, num voo rápido empoleiram-se na trave de carvalho da adega, e…. Assunto arrumado.
Na mesa do canto com um banco corrido de cada lado, está como é hábito o Constantino. E também como é habitual, não come nem bebe nada. Mas ri de orelha a orelha quando os homens entram e o cumprimentam segundo um ritual que há-de ter a idade dele, menos os vinte anos que levou a ficar homem e a poder ir para a taberna do Narciso. Ora o Constantino para que conste, não era um tipo normal. Quis a imponderabilidade destas coisas que nascesse deficiente. Tinha pouco mais que um metro de altura, mas não era anão. Se não houvesse com que lhe comparar a altura não se percebia a sua pequenez, já que era bastante bem proporcionado. Usava uns óculos garrafais de tartaruga sustidos por uma narigueta de respeito. Assim do tipo do gnômon de um relógio de Sol
 A sua cara de barba muito cerrada e rapada, dava-lhe um tom cinzento, fazia lembrar as gravuras do El Mano  (Bocage).
Porque não havia motivos para que assim não fosse, a sua expressão era um eterno e imutável sorriso. O pior de tudo é que todas estas anomalias eram acompanhadas de um evidente atraso mental. No bairro ninguém o incomodava por prazer, ou isso assim, não era o tontinho lá do sitio, e levavam pouco à paciência que alguém fizesse pouco dele ou o molestasse.
Claro que, sem que isso constituísse chacota, o Constantino fazia parte de alguns jogos, que longe de o incomodar até o faziam rir, e quer se queira quer não, ainda que neste caso, rir fosse uma cãibra da Alma, é melhor rir que chorar….  Aliás a brincadeira tem o seu quê, e algo que se lhe diga…. Provavelmente a coisa teve origem fortuita, e foi-se cimentando e apurando as cambiantes ao longo do tempo…. Seja como for o Constantino estava absolutamente convencido de que dava choque…. Dos eléctricos estão a ver…..
Então toda a matula lá do bairro quando chegava a qualquer lado onde estivesse o Constantino, cumprimentava a geral: Pessoal !!! e estendia a mão ao Constantino mas logo a recolhia e amedrontado perguntava: É pá “Costantino” …. Estás desligado???? Ele respondia maroto: ‘tou, ‘tou…. E o outro confiante dava-lhe o bacalhau… Mas logo de um salto retirava mão e dizia por entre esgares de dor: É pá “Costantino” pá!!!!! Enganaste-me….Afinal pá!!!! Estavas ligado pá…..
O outro ria até sufocar, um riso de boca escancarada sem vergonhas nem culpas ou desculpas, no seu universo de proto-felicidade. Que apenas as crianças e eles têm….  
Eu da primeira vez que estive com ele presente, foi na tasca do Narciso, trabalhava ali perto na antiga Emissora Nacional à rua do Quelhas, e calhou ir lá lanchar. Como é normal ,e aprendi a fazer, cumprimentei as pessoas presentes, e eis senão quando, o bom do Constantino se chega a mim de mão estendida. Diz logo um rapagão que beberricava ao balcão: Olha lá óh “Costantino” vê lá o que vais fazer ao homem???!! Atarantado foi a minha vez de sorrir com um daqueles sorrisos lorpas de quem foi apanhado numa das curvas das coisas. O calmeirão prossegue então: Então não vê o senhor que aqui o “Costantino” dá choques, o malandro. Vá lá Costantino” desliga-te lá para cumprimentar o Homem. Recuperei o domínio de mim, pois receava ter cometido alguma gafe protocolar….. e estendi-lhe a mão enquanto perguntava: você está desligado? ‘Tou, ‘tou. Então com um sorriso seguro aperto-lhe a mão e faço a rábula de ter sido atingido pela raiva de  Zeus…. O resto é sabido o gargalhar inocente do homenzinho e a felicidade geral por se ter cumprido o ritual bairrista….
As sandes de torresmos eram soberbas e o vinho era verde do pipo, da terra do Narciso…. Fiquei ainda uma boa meia hora à conversa com os operários do Alfeite…. As ex varinas agora esposas mães e donas de casa passavam disfarçadamente à porta e deitavam o olho para controlar os seus manjericos, não fossem aparecer-lhes em casa a cantar o Tiroliro….
Um dia normal….

                                    António Capucha
                   
                 Vila Franca de Xira, Novembro de 2010

PS – Dedico este conto aos meus colegas de profissão que são da Madragoa. Ao Jorge Mendes, ao Jaime Silva, o Alcides e outros entretanto já falecidos, mas não esquecidos, Alvarez, Sarafim Matos (o olhinhos)  etc…etc…

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