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segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Luísa, mãe solteira



A calçada irregular, a noite mal iluminada, só nesta rua, e para disfarçar o cansaço, Luísa contou três candeeiros num longo pisca-pisca…. Como me doem os pés, pensou…. O pensamento vai torpe de ter passado o dia na linha de montagem. Aquela sucessão de gestos sempre igual. Ao fim de quatro horas já a mente dormia, e continuava a mexer os braços e pernas reflexamente como o rabo amputado a um lagarto. O cérebro para ali, já não dizia nada de que desse conta. Os músculos contraíam-se  e distendiam-se ao ritmo certo abandonados à sua condição operária. Agora ao fim de dez horas imaginem se forem capazes,……
Arrasta-se Até casa, se é que se pode chamar casa aquilo, chove lá dentro as paredes escorrem água, Está um daqueles dias em que nada seca…. E as fraldas da menina? P’rá amanhã já não tem…. Tenho que me deitar em cima delas para as secar.  E o pensamento continuava a vadiar preso ao seu ser apenas por uma guita como um papagaio de papel.
Os pés enfim dormentes deixaram de doer e de sentir o frio dos sapatos encharcados. A sua mãe, há-de ter à sua espera um caldinho bem quentinho. Quero ver se ainda apanho o Sr. Fernando aberto para levar um pão de mistura que ele me fie, o de mistura é melhor que enche mais. E sentiu um fio de saliva a encher-lhe a boca. Ai credo, os dias agora são tão curtos. A menina deve estar cheia de fome…. E sem dar por isso estugou o passo… Pobrezinha da minha mãe dizia de si para si, ela não se queixa mas eu bem vejo, qualquer dia nem levantar-se pode. E depois o que é que eu faço, sem a minha querida mãezinha. Um tropeção numa pedra mais saída do parco alinhamento, e desvanece-se este funesto pensamento. Ainda bem coitadinha da Luísa, digo eu… Já tem que lhe baste. Mas praguejou pois então e chamou-lhes “tanta nome”  que se as pedras  tivessem mães, chorariam de raiva…. As pedras das calçadas têm destas coisas, são famosas por serem choronas. Inertes fanchonas….
Esta chuva….. Bom está no tempo dela…..
Tenho que pagar a renda da casa. Não posso esquecer senão lá tenho que aturar o senhorio, mais o seu bafo de alho e comida azeda, e aquela enxúndia trémula ao andar pesado de boi manso… Que nojo! Olhou os sapatos ….. Abertos de lado! Só me faltava mais esta.
A menina Há-de estar cheia de fome! Espera joaninha…. A mãe já vai dar-te a mamada….
Um golpe de vento vira a “sombrinha”  e as gotas de chuva gordas, pesadas fustigam-lhe as faces. Também com este vento ela entrava por baixo e por cima…. Ainda bem que não pus rímel, havia de ficar bonita!!! Parecia um espantalho….
Ai oxalá o Sr. Fernando ainda esteja aberto… É um duche; a mamada à menina,; o caldo quentinho e cama….ÁH e secar as fraldas… A minha mãe não pode secar nenhuma, Eu bem a vejo, ela disfarça mas eu bem vejo, aquele andar bamboleante agarrada aos moveis e a careta de dor ao levantar-se de uma cadeira…. Esta humidade entranha-se-lhe nas articulações…. Pobre mãe…..
Os olhos da menina são assim…. Só vendo. De manhã quando acorda são verdes e à noite quando se deita de barriguinha cheia, são cor de mel…. São tão lindos como contas… Quê??? Mais lindos que contas!!!!
Como que anestesiada, fura a tempestade insensível à chuva, e ao vento e frio. Corpo franzino mas robustecido pelo trabalho duro, quase trabalho de homem, avança impune e decidida….
Amanhã hei-de dar a volta pelo outro lado e vou à Farmácia do Sr. Aurélio por mor dele me arranjar uma coisa qualquer para a minha mãezinha… Injecção que seja…. Nem que tenha que ir ao Sr. Doutor Luis para passar a receita…. Quando tem que ser …. Tem que ser!
“Rás’ ta parta” ao tempo… Que merda.  Quando saiu da fábrica o corpo pedia-lhe descanso…  e agora … Toma lá o descanso. Um raio cortou a noite em duas…. E ela lembrou fugazmente…  Relembra que numa noite assim com o seu namorado, o Júlio, no palheiro do pai dele e enroscados um no outro e nos seus dezoito anos, entrelaçados como duas serpentes, durante sabe lá quanto tempo, se fundiram num só ser…. Uma só alma…. Depois …. Bem depois foi sei lá, nunca experimentara nada assim tão intenso e doce… Não conhecia nada melhor que isso…. Bom…. Desculpa pequenina, os teus beijos lambuzados são o melhor da vida. E mergulhar nos teus olhos é o sublimar de tudo, capaz de secar e matar o nada….. Já vou meu amor…. Estou quase a chegar… Depois é só secar-me… Será que ainda há gás para um duche? Sabia-me bem um duche quente.
Mete a chave à porta e a sua figura esbelta, recorta-se contra o negro da noite. A sua expressão é impossível de descrever sobretudo a do deslize progressivo da dureza de fazer face à intempérie,  para a de felicidade plena….. A joaninha em pé sobre as suas pernitas, a andar pela primeira vez, a correr para ela de braços abertos…. Ela nem pousou o saco com o pão….  Içou-a e foi integralmente lambuzada, que felicidade.
E FEZ-SE ABRIL, PRIMAVERA….      


                      António Capucha
     Vila Franca de Xira, Outubro de 2010

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