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terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Ceia da consoada

Mesa para a ceia da consoada
Na sala de sobrado de madeira e parca de moveis, a mesa grande e rectangular de carvalho, está posta. Sobre uma toalha de linho bordado, estão postos os pratos da faiança mais fina que há em casa. Loiça de Vista Alegre, e o serviço de copos que foi prenda de casamento. Cristal com entalhes e um fio dourado junto ao bordo. São quatro, como mandam estas coisas. Um para a água, outro para o vinho branco, ao lado do vinho tinto. Estes diferem apenas no tamanho, pois são em tudo semelhantes e estão colocados em escadinha do mais alto para o mais baixo e da esquerda para a direita. A taça para o champanhe, esta, com bordo de diâmetro largo e porte atarracado, se bem que com a inevitável linha de ouro junto ao bordo. Este é que difere, mas fica bem no conjunto. Os talheres rebrilham de terem sido polidos e esfregados com palha d’aço, até reflectirem as parcas luzes dos candeeiros de petróleo de chaminés impecavelmente limpas com papel de jornal.
No centro da mesa uma terrina com sopa fumegante que esteve toda a tarde a ferver na lareira na panela de ferro forjado de tripé. Um naco de toucinho, uns “feijões frade da cara verde” umas batatas uma cebola, alho e couves e outras hortaliças fresquinhas da horta do quintal. Sobre a mesa fica ali a martirizar-nos os narizes, até que todos estejam sentados. E o Avô José Vaz, faça a oração, até ao amem, esse é  a “password” para o início da refeição. Ao lado da terrina está uma travessa com “criadilhas” (uma espécie de cogumelos saborosíssimos) mexidas com ovos dos galináceos da enorme capoeira do quintal. A travessa é do mesmo serviço dos pratos e só vê a luz do dia, neste caso: dos candeeiros, em dias assim. No topo da mesa em frente ao patriarca, um cesto de verga com um guardanapo de linho está um pão enorme que foi cozido no forno comunitário um pouco mais abaixo na mesma rua…. A faca para o pão de cabo de madeira nas mãos do avô, corta fatias de diversos tamanhos que deixa no cesto. Não dá para esquecer o som da faca a cortar a grossa côdea ainda estaladiça, um som seco que cheira a pão….
Do outro lado da terrina está, num tabuleiro de barro de ir ao forno, um galo capão assado na lentidão das tardes de inverno bem ao fundo do forno, enquanto mais à borda o pão coze mais lesto….
Junto a ele numa tigela de barro com desenhos de flores, um puré de batata de que ainda lhe sinto o gosto. Feito com leite de cabra e com manteiga que o meu avô batia e virava todos os dias quando chegava dos seus afazeres lá no campo.
Num móvel por detrás de mim estavam as sobremesas, compotas diversas, uvas passas ainda em cacho, figos secos da enorme figueira do quintal, amêndoas da Tapada Nova, nozes da Mingrocha e um tabuleiro redondo com uma garrafa estilizada de vinho generoso e cálices do mesmo serviço dos copos com honras de mesa.
A compor o ramalhete ainda sobre o móvel dos doces, repousava um bolo acastanhado a rescender a canela, cravinho, rosmaninho e sei lá o quê mais. Não tinha açúcar. Era feito com mel e a gordura era o azeite e um pouco de manteiga. Não tinha nenhum nome em especial… Era o bolo….
Um grande alguidar em barro pintado com cenas de trabalho no campo, estava até acima de filhós fritas até à hora de ir para a mesa. Com laranja e um toque de bagaço. A massa era batida com vigor por braços de trabalho, nus, femininos, e depois da sova repousava, abafada com cobertores, levedava  durante um dia inteiro, depois estendia-se com o “rolo da massa” cortava-se, esticava-se entre os dedos de ambas as mãos, e fritava-se em cânticos ao menino Jesus, à noite do caramelo e por aí adiante, para que a fervura não encruasse quem estivesse na cozinha tinha que cantar uma quadra.
Ah é verdade faltam os borrachões. É o bolo com o nome mais sugestivo de todos. Trata-se de um biscoito de canela e aguardente, esta, em quantidade que não envergonhe….. São magníficos, e a sua travessa lá estava para ajudar à festa. E as broas meias luas pequenas e secas com muita erva doce, e durinhas para que aguentem tanto quanto possível no saco de pano de linho do “armário dos tormentos” contíguo à cozinha…
Depois da ceia íamos à missa do Galo, coisa que me divertia imenso, porque o Padre, um sujeito amplo e de sorriso fácil debitava a coisa num latim que era só dele, por que era um pouco “trogalho” de fala. Depois voltávamos a casa e os crescidos, agora todos os meus tios e tias atiravam-se aos licores e aos borrachões e nós tínhamos que ir para a cama que era tarde…  Uma filhó filada à surrelfa, mais uns borrachões  e ala, encher a cama de migalhas….
Ainda estão com fome? Eu por mim já estou cheio….. Cheio de saudades, pelo menos!
     

                                António Capucha

            Vila Franca de Xira, Dezembro de 2010

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